Livros
Apesar de constituir sua figura pública pela poesia e a canção popular, Vinicius foi um dos grandes prosadores de sua geração. Uma geração, aliás, em que a boa prosa do tempo era cristalizada no gênero carioquíssimo da crônica.
Com o amplo número de jornais que circulavam na cidade e com um time de escritores que ia de Rubem Braga a Carlinhos de Oliveira, de Carlos Drummond de Andrade a Clarice Lispector, de Fernando Sabino a Nelson Rodrigues, Vinicius se instalou entre eles como um cronista que transmitia para a prosa os mesmo motivos e a mesma leveza de estilo que apresentava ao público em seus poemas.
A maioria de seus textos em prosa teve origem na imprensa carioca dos anos 1940 e 1950. Vinicius manteve estreita relação com as redações, escrevendo não só crônicas, como também críticas de cinema e textos sobre música popular. Passou por jornais e revistas como A Manhã, O Jornal, Diário Carioca, Diretrizes, Vanguarda, Última Hora e Fatos e Fotos. Também escreveu para semanários que marcaram época como o Flan, Senhor e O Pasquim. Muitos desses textos foram reunidos em dois livros de crônicas: Para viver um grande amor (1962) e Para uma menina com uma flor (1966), publicações em que a prosa e a poesia convivem nas mesmas páginas.
A prosa de Vinicius sintetiza como poucos um espírito de época da literatura e da vida cotidiana brasileira, atravessadas pelo interesse em seus personagens, suas paisagens e seus grandes criadores.
AGUA CLARA CON SONIDO
De Garcilaso de la Vega dizia-se que era el más hermoso y gallardo de cuantos componían la corte del emperador. Chamavam-no, sem inveja, el amado de los dioses y su elegido. Morto com a idade de Cristo (1503-36), viveu o grande toledano uma vida de um brilho raro, distribuída entre um desterro, muitas batalhas e, nos interlúdios, lindas mulheres, entre as quais sobressai sua maior paixão, dona Isabel Freyre, dama portuguesa da corte da imperatriz Isabel, que, aparentemente, não lhe dava o devido troco. Mas a verdade é que o poeta-cortesão ia levando, a mão nos copos da espada, um sorriso nos lábios e estrofes de Virgílio, Dante e Petrarca na ponta da língua, para amaciar corações outros que não o da bem-amada.
Era um bravo, à maneira de Villon e de Camões. Tão bem a cavalo como a pé, amigo de poetas e de santos, morreu nos braços de seu amigo, o marquês de Lombay, que a Igreja canonizaria como são Francisco de Borja, depois de, sozinho, dar início ao assalto à fortaleza de Muy, na Provença. Mas quando repousava-se das armas, empunhava, ao que se conta, a harpa com igual mestria. Formal, no sentido clássico, sem ser culterano, soube deixar fluir de sua curta mas magistral obra poética uma luminosa música verbal que o distingue entre os pioneiros do chamado Século de Ouro da poesia espanhola. E foi também um extraordinário inovador, não só com trazer para a lírica de sua pátria os elementos positivos da escola italiana, mas com enriquecê-la de criações novas, qual seja a estrofe composta de versos de cinco, sete e onze sílabas, conhecida como estrofe-lira, por ser esta a palavra final do primeiro verso de sua famosa canção “A la flor de Gnido”:
Si de mi baja lira
tanto pudiese el son que en un momento
aplacase la ira
del animoso viento
y la furia del mar, y el movimiento...
E que maior glória para Garcilaso, ver suas inovações constituírem as formas diletas de poetas espanhóis do século VI da estatura de frei Luis de León e, sobretudo, San Juan de la Cruz?
Há um verso do poeta que me encanta, na écloga dedicada ao vice-rei de Nápoles, em que são personagens seus dois filhos pastoris mais amados, Salicio e Nemeroso. Vem lá pelo meio do poema, e diz assim:
... cuando Salicio, recostado
al pié de una alta haya, en la verdura,
por donde una agua clara con sonido
atravesaba el fresco y verde prado...
O verso a que me refiro, como já hão de ter percebido, é o terceiro do trecho aqui citado: “por donde una agua clara con sonido”. É inútil tentar traduzir. Água clara com som, água clara com ruído — nada terá nunca a beleza natural, a luminosidade de córrego límpido correndo fagueiro ao sol, o onomatopeísmo substantivo, sem necessidade de aliterações, do verso original de Garcilaso. São como sons puros de música.
Eu, se jamais tivesse feito um verso assim, pendurava as chuteiras.