Prosa dispersa


A letra A: “palavra por palavra” (II)

A LETRA A: “PALAVRA POR PALAVRA” (II)

 

Abacate: Fiz certa vez para a minha série de poeminhas infantis, um sexteto sobre essa fruta de que gosto muito e que pertence, segundo me ensina o verbete de mestre Aurélio, à família das Lauráceas — o que não é dizer pouco. O poeminha é como segue, e faz grande sucesso entre crianças de mentalidade coprófila e adultos de mentalidade de criança, como é o caso de meu amigo e compadre Chico Buarque:

A gente pega o abacate 
Bate bem no batedor 
Depois do bate que bate 
Que é que parece? — Cocô. 
Ô abacate biruta: 
Tem mais caroço que fruta!

Mas eis que, de repente, surgem-me, no ato de escrever, confusas, dolorosas recordações ligadas a essa palavra. Vejo-me menino, na casa de meus avós paternos, à rua General Severiano em Botafogo, debruçado à grande mesa da sala de jantar, apreciando meu avô comer com delícia o seu abacate no ritual gastronômico cotidiano. Era toda uma cerimônia, as refeições de meu avô Moraes. Brando déspota baiano, cheio de bossa e filáucia, colocava-se ele à cabeceira, o guardanapo atacado ao pescoço, à moda antiga, e sem dizer abacate atacava os próprios, depois de cortá-los em duas metades, que enchia de açúcar até às bordas. E era de vê-lo traçando-os a colheradas, devagar e sempre, até a última epiderme. Depois, limpava, com um rápido gesto de ida e volta, a boca e o bigode branquinho, suspirava fundo e partia para o seu quarto de leitura, onde ficava o lindo oratório de minha avó. E ali se deixava ele no embalo da velha cadeira de balanço, de espaldar de palhinha, a ler pela milésima vez os folhetins de Michel Zevaco, de que eu era também leitor constante. Quantos títulos não lembro… Os Pardaillan, Buridan, Os amantes de Veneza, A torre de Nestle...

— Ecco la saeta!

— La paro!

O italiano entrava nos duelos como cor local. Pardaillan aparava o que viesse, o herói de todo caráter, enquanto, pouco a pouco, o velho avô se ia desintegrando em sono. Eu chegava pé ante pé para espiá-lo de mais perto, como quem examinava uma múmia de museu. Que fenômeno, um velho! Mas não qualquer velho: um ancião espetacular, como meu avô Moraes, o rosto cortado em mil rugas descendentes e as pálpebras inferiores começando a cair; um velho com o dorso das mãos enferrujado e a pele do pescoço pendente, já meio solta da carne.

Meu avô Antero Pereira da Silva Moraes... Bendita a palavra que desencadeou tanta saudade e o trouxe de volta tão nítido como o vejo agora... a arrastar os pés ao longo do corredor, sem tempo e sem rumo — um macróbio total. Circundava-o sempre um aroma de sândalo ou alfazema, por isso que minha avó nunca se esquecia de espalhar, em seus gavetões, sachets perfumosos que lhe impregnavam a roupa. E sua vida era essa: vagar pela casa, o único território em que podia velejar com segurança.

Nós, meninos, tínhamos cuidado para não esbarrar nele, em nossas correrias, de vez que o corredor era o desaguadouro natural de nosso tropel faminto, quando nos chamavam para a mesa. O velho, ao sentir que algum pé de vento o cruzava, dava uma leve guinada de proa, fazia uma lenta meia-volta parada e seguia mecanicamente em sua esteira, agarrado por cabos imponderáveis àquela vida infantil que passava à toa. Tudo nele parecia realizar-se num mundo acústico, onde os sons chegassem como num aparelho de surdo subitamente conectado. Uma porta batia, alguém berrava por alguém, o cachorro ladrava — e desencadeava-se em seus tímpanos uma tempestade que o fazia retornar ao mundo dos vivos. Sua máscara frouxa assumia um ar dramático e ele, transtornado, perguntava, numa voz pânica e trêmula de náufrago pedindo socorro:

— Que foi?

Às vezes parava, incerto sobre o rumo a tomar, desligado de tudo. Seu rosto ensimesmava-se, num desesperado esforço de ver, como se estivesse mirando um poço sem fundo, e depois exprimia espanto, pois o medo do desconhecido parecia de repente tomá-lo. Girava os olhos, então, dentro da cratera rubra das pálpebras soltas, como a buscar onde se ater. Ficava assim, a mover devagar a cabeça para um lado e outro — um bicho velho diante de sua própria morte.

Depois, refeito o vazio, ele reunia novas forças e saía em seu passinho miúdo e arrastado, de volta à cadeira de balanço como um velho barco ao ancoradouro. Ali, com um máximo de cautela para não cair, sentava-se bem devagarinho, num exercício cujo resultado parecia deixá-lo feliz, pelos esgares que fazia. Puxava a manta sobre os joelhos e, pouco a pouco, deixava pender a cabeça. Que pensamentos poderiam então tomá-lo? Talvez lhe chegassem, em fragmentos rútilos, as risadas claras das mulheres que teve — e muitas foram, ao que parece...; talvez os rufos e as clarinadas das paradas militares a que tanto gostava de assistir.

E era doce, nessas horas, depois que o sono vinha, ver chegar toda branquinha, toda curva, a sua eterna velhinha que se deixava estar um pouco junto ao umbral, queimando a sua cera antiga numa chama de amor quase apagando. E depois de mirá-lo algum tempo, ela ia, minha santa avozinha, e se ajoelhava ao pé do oratório, onde ficava a tatalar preces ausentes, os olhos postos com infinita devoção no Menino Deus, em sua manjedoura, ou em Nossa Senhora da Conceição, sua xará celeste, perdida na visão de beatitudes que não conheceu em vida — pois, segundo consta, em matéria de mulher, meu avô não deixou passar ninguém. Mas ela o amava, o velho sacripanta, de um amor tão puro de esposa, que eu posso vê-la neste instante, mesmo mergulhada na visão do Ser Egrégio, a cuja mão direita deve sentar-se agora, linda e modesta como sempre, tendo ao lado seu velhinho todo elegante em seu paletó de alpaca — e cuja entrada no Céu só obteve pelo muito que rezou e por todo o bem que fez em vida. Pois o velho não era de brincadeira.


Jornal do Brasil, 24-25 de agosto de 1969

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