Prosa dispersa
POR QUE AMO PARIS1
Voilà la Cité sainte, assise à l’occident!
Rimbaud
Em dezembro de 1938, um jovem bolsista brasileiro para a Universidade de Oxford (com perdão do estilo Time Magazine...) tiritava num quarto de pensão em Londres, a que nada, nem mesmo seu coração apaixonado, conseguia aquecer. Tratava-se, segundo as manchetes, de um dos mais terríveis invernos do século e era impossível sair por muito tempo à rua sem que as orelhas do malfadado se descolassem e seu nariz saísse batendo as asinhas.
O jovem bolsista, envolto em mil cobertores, lia sem parar os seus primeiros autores ingleses de sustância e que, por essa razão, associam-se até hoje, em sua mente, à ideia de frio: John Bunyan e Jane Austen. Um tal enfurnamento, passado usualmente em posição horizontal, determinou, é claro, uma reviravolta completa em seus horários. Ia dormir quando a neve colada aos vidros de sua janela (sua primeira neve!) começava a fazer-se mais alva com a luz da madrugada; e acordava à tarde, com o café da manhã a olhá-lo de mau humor com o seu negro olhar gelado. Sua inapetência era tal e seu frio tão grande que data daí um respeito britânico pelo uísque como agente calefator; cujo uísque, vazado a princípio em poções preventivas, provou ser tão útil que começou a ser ingerido em doses federais; e a verdade é que o jovem bolsista ainda não estava preparado para tanto. Seu temperamento imprudente e sua impaciência entraram em ação e uma noite ele saiu. O resfriado que apanhou resultou tão recalcitrante que, juntando umas poucas libras, resolveu ir curá-lo em Paris.
Em boa hora! Nunca mais lhe sairia da memória sua chegada, sem dinheiro e sem orientação, a essa cidade amanhecente que teria um papel tão decisivo em sua vida. O táxi que tomou na estação devia ser um remanescente da grande corrida para o Marne, na Guerra de 1914, e o chofer bigodudo um velho poilu, a quem por certo não faltaria uma cicatriz de baioneta no flanco. Era tudo azul e cinza-azul, como no soneto de Rubem Braga: uma coisa indescritível de beleza. E como a beleza está no homem e não nas coisas, esse seria o seu instante de estesia máxima diante de Paris, para a qual, desembarcando muitas vezes depois, em circunstâncias parecidas, deitaria um olhar apenas amigo ou conivente.
O jovem bolsista lembra-se de haver pedido ao chofer que o levasse a um hotel qualquer bem barato. O velho olhou-o por sobre o ombro com uma severidade não isenta de simpatia, ubicou-se por uma ponte, deu voltas num labirinto de pequenas ruas e afinal parou diante de uma fachada très vieux Paris, onde havia escrito: Hotel St. Thomas d’Aquin. Era na rue Près-aux-Clercs, no coração do Quartier Latin. Lembras-te, Di?
Lembras-te, Di
Cavalcanti, Di
Amante da noite
Di superior
Ao dia, diante
Do amor, ante
Rior ao México
Anterior a tudo
Di sem hora de
Boina se rindo
Se rindo de
Consuelo de
Saint-Exupéry
E do sargento
Tirso Di de
Madrugada chegando
Da Rádio Di
De la Coupole
Bebendo champagne
Dez francos a taça
Diagrama de Di
Mi sol si ré lá
Bordão que eu vi
Ébrio de seios
Ventre coxas Di
Di de Montparnasse
Di de Paris.
Lá vai ele, o jovem bolsista brasileiro para Oxford, sem um franco no bolso e um argueiro no olho que não o deixa ver Paris pela primeira vez. Dinheiro, o amigo Cícero2 lhe emprestará algum, se for preciso. O argueiro é que são elas! É terrível estar alegre assim e ver Paris através de lágrimas.
— Monsieur, voulez-vous m’enlever cette vache de dans mon oeil?
O farmacêutico espia. O la-la!
— Ça doit vous faire du mal, mon p’tit.
— Ça m’empêche de voir Paris. C’est mon premier voyage. J’ai pas d’argent sur moi. Je vous payerai demain.
Ah, eis que a visão do Louvre se enfoca. Que maravilha! O jovem bolsista pega o Pont des Arts, o lenço enxugando o olho esquerdo, o passo rápido, ao assalto da Beleza.
— Hey, Milreis!
Não é possível...!
— Half-a-crown!
São seus amigos Reginaldo Maudling3 e Charles Steward,4 do primeiro de Merton College, o segundo de Bailliol, em Oxford. Seus melhores companheiros na Universidade. Gente cem por cento.
— You, buggards!
— Why the hell are you crying?
O jovem bolsista explica. Maudling ri a sua boa risada:
— Bloody hell! I think we should have a beer and celebrate!
Adeus, Palais du Louvre. Rios de cerveja correrão. Eu conheço Maudling, e sobretudo Steward. Menino danado! Para aguentar tanto líquido, algum tem de escapar pelo ladrão...
Três meses depois, em março de 1939, o jovem bolsista, de volta a Paris, foi apresentado a uma menina de 17 anos, fina de corpo, séria de semblante e com uns olhos fugidios de corça. A querida amiga que nos apresentou disse apenas:
— Você conhece minha sobrinha...
Mas, em sua distração e volubilidade usuais, esqueceu-se de acrescentar:
— Você vai se enamorar dela daqui a 18 anos, numa festa em casa de um arquiteto amigo seu, no Rio. Cerca de um ano depois vocês irão se reencontrar aqui em Paris, e você ficará irremediavelmente apaixonado por ela, e há de sofrer como um possesso todas as dores de sua paixão, e na Quarta-feira de Cinzas de 1959 você terá um desastre de automóvel cerca de Petrópolis, onde ela estará veraneando, e você, coberto de sangue, ao se sentir ir morrendo, ela tão perto, olhará a sua morte com um infinito sentimento de pena porque tudo poderia ter sido e não foi; mas você preferirá morrer a ter de viver sem ela, sobretudo depois de lhe ter dito, como disse, numa noite de Sexta-feira da Paixão, no Club St. Florentin, 15 rue St. Florentin, que você a tinha dentro de você sem saber desde a mocidade, desde aquele dia, 19 anos antes, em que eu a apresentei a você, como estou fazendo agora. E você escreverá para ela a “Elegia de Sexta-Feira da Paixão”, que dirá o seguinte:
Amiga, deixa que a noite escolha hoje o teu vestido
Em vez de Dior, Dessès ou Givanchy. Não te esqueças
É Sexta-Feira da Paixão. Os castanheiros
Estão apenas acordando do longo inverno que passaste
Ao sol, longe de mim. Se vires a Tour Eiffel como uma doida
Declamando Eluard, não te impressiones:
Hoje tudo é possível. Lembra-te
É Sexta-Feira da Paixão. Provavelmente
Se formos até Pont Mirabeau, encontraremos
O sargento Appolinaire debruçado mirando o Sena
Na esperança de alguma afogada. Ah
As afogadas do Sena! Sinto-as
Deslizando no meu peito... Mas
Não te impressiones tampouco com as loucuras que eu disser.
Olha antes minhas mãos. São
Como pássaros sem ninho, precisam tanto, tanto
Ser aquecidas... Vem, amiga, vestida de noite; conta
A Fábula da Mãe-que-não-Veio. “— Olhe, meu anjo
Não se constranja, mas se você não puder sair sozinha
Comigo (figa! diz que pode, diz que pode!) eu compreendo...”
Amor! e já te amava tanto antes de amar-te... “— Lembro
Tão bem de você, era março de 39, nós vínhamos
Pelo Boulervard des Italiens, você teria o quê? uns 16
17 anos...” (como uma jovem corça arisca
Ela era, olhava-me de lado, sorria
Apenas com as comissuras, era linda
Como um Maillol). “Não, eu posso sim, acho que posso
Não há mal nenhum, isso é Paris, você não acha?”
(Acho, meu anjo. Acho tudo o que você quiser. Acho que hoje
É Sexta-Feira da Paixão, e o Cristo não poderia ter escolhido melhor dia
Para morrer de amor por nós.)
“— É, é isso mesmo. Afinal de contas
Eu sou um velho amigo da família...” (Coisa linda
Vestida de noite, eu vou te amar tanto
Mas tanto que o meu amor será captado
Por todos os radares, e os radioamadores
De todo o mundo permanecerão em vigília
Para ouvir, banhados em lágrimas, pulsar o meu coração.) Amada!
Vamos comer camarões no “Stresa”, “sauce tartare”? Depois
Pediremos “fraises du bois” que cobriremos com todo o açúcar
Que houver no açucareiro. “— Você gosta muito de açúcar?
De música? De ver cinema bem na frente? De
Filhinho? De silêncio?” (Então por que não saímos daqui agora mesmo
E convolamos?) Ah, meu amor
Que vontade de beijar as árvores noturnas! (enquanto busco
Acertar o meu passo pelo teu: coisa difícil
Porque te moves num mínimo de espaço). Amiga
Que te moves num mínimo de espaço, que graça
A tua! Como pode uma coisa tão pequena
Ser tão grande? Onde vão ter esses imensos infinitos
Que partem dos teus olhos? E qual é o nome
Do ar que te circunda? “Sous le Vent” de
Guerlain? Ah, não seja esta a dúvida... Virarei armador
Irei escolher sementes, flores, resinas
Nas mais inacessíveis ilhas, de cujo extrato
Criarei perfumes capazes de te matar de amor por mim. “— Você
Gostaria de ouvir um bom jazzinho num clube privativo
De que sou sócio? É simpático... gente moça, boa música
Borboletas nas paredes. Há uma caixa
Só de espécimes do Brasil... Vamos?” (figa!)
“— É, podemos ir um instantinho, só não quero
Chegar tarde demais...” Amor!
Ao dançar senti teu rosto roçar o meu, minha boca
Aflorou tua pele, o meu beijo
Veio de longe, e o meu amor despenhou-se do vácuo
Como um negro sol incendido, varando milênios
De solidão e desencontro, recuperando
Infinitos perdidos, espaços
Abandonados, arrastando no seu vórtice
Astros sem luz, estrelas moribundas
Mundos sem amanhã.
✩
Por isso, porque és só minha e eu sou só teu
É que eu não sou mais eu.
Foi bem mais que um milagre, vida minha…
Foi como a própria vida:
ACONTECEU.
Uma noite, dois anos antes, bêbado e desesperado, eu fora ter a Pont Mirabeau...
Uma noite, em Pont Mirabeau
Fui me encontrar com Appolinaire
Como falamos de mulher
Como falamos de Rimbaud!
Não sei, mas alguém que me viu diz
Que eu tinha tomado muito uísque.
Sob a ponte corria o Sena
Como no poema do poeta
A água corria negra e inquieta
Como a vazar da minha pena.
Amar? Melhor morrer... Appo-
Linaire, pálido, concordou.
Merda! Merda! Três vezes Merda!
Vociferei para a cidade
Enquanto a réplica de pedra
Da Estátua da Liberdade
Perscrutava com um olhar frio
Paris à escuta em torno, e o rio.
— T’es dans un bien sâle état
Mon pauvre vieux. — Appolinaire
Disse para me consolar
Assim com um ar de quem não quer.
— Va te faire foutre! Tu m’emmerdes!
Respondi — e ele ficou verde.
E vomitei dentro do rio
A gargalhar do caporal
Que, os punhos cerrados, partiu
Num duro passo marcial
Enquanto duas mulheres, defronte
Vinham andando pela ponte.
✩
Uma outra noite, perdido em Menilmontant, eu tivera a visão da miséria. Era um beco sem saída, um impasse, um cul-de-sac estreito, fétido e perfeitamente comme il faut.
Un cul-de-sac aux murs étroits,
Un p’tit chat noir que se promène,
Un vieux soulard que a de le veine
De se trouver coincé comme ça;
Une fenêtre qui s’entr’ouvre,
Une main qui sort et qui vide
Un jules tout plein dans le vide
Juste sur la tête du clochard.
Un chien qui fouille dans la poubelle,
Un chien qui aurait suivi Prévert,
Une putain qu’sent la vaisselle
Et qui aimerait prendre un verre;
Des voix de gens qui font l’amour
Et qui vachement en profitent,
Un monsieur du XVlème qui a peur
Et dont les pas s’en vont bien vite…
O cul-de-sac aux murs étroits
Combien des gens ressemblent à toi…
Combien y en a-t-il dans la rue
Qui sont des culs-de-sac qui puent…
Combien de grands dames aux grands airs
Combien de riches et gros bourgeois
Combien de hauts fonctionnaires
O cul-de-sac ressemblent à toi!
Mas uma tarde, reencontrado em Paris, as mais fundas feridas cicatrizando nos óleos do amor, eu tive a visão da Beleza. Era ela, Notre Dame de Paris, a grande catedral, a cuja porta eu aguardava a minha amada, e que com braços maternais nos abrigava da multidão, isolava-nos no nosso mundo de ternura e tristeza. Ali, a dois passos, ficava a rue St. Julien-le-Pauvre. Havia uma casa de chá de tipo inglês chamada The Tea-Cady:
Eu te levei ao “Tea-Cady”
Na Rue St. Julien-le-Pauvre
Very British o “Tea-Cady”
Na Rue St. Julien-le-Pauvre…
Veio tea, toast and marmelade
O my sweet Lady!
Um mês ocultamos ali
O nosso mágico impossível
Era tão belo tudo ali
Que parecia irremovível
Mas, ai, chegava sempre a hora
De ires embora.
Hoje, embora incréu, não me assombra
Saber que ter-te e ser feliz
Deve-se a havermos estado à sombra
De Notre Dame de Paris
E a meu amor ter dez no exame
De Notre Dame.
✩
Eis por que não quero fechar esta reportagem lírica sobre a bem-amada cidade sem recitar-lhe uma oração a ela, a gloriosa Nossa Senhora de Paris, que Xangô meu pai há de proteger, são Jorge meu padrinho há de defender, e que há de viver para sempre na sua floresta gótica para abençoar os namorados de todo o mundo que se encontram em Paris e que vão ocultar na sua sombra a angústia de não poderem viver o próprio amor.
Senhor, maio de 1959
Oração a Nossa Senhora de Paris
Notre Dame de Paris, Notre Dame de Partout, rogai por mim, rogai por nós, os malferidos de amor, os feridos do doce langor, os que uivam à lua nas praias desertas do mundo, os que buscam um vagabundo num bar para falar da bem-amada, para não dizer nada só que ela é bonita, os que saem andando em campos de estrelas e de repente é uma rua deserta com um apartamento aceso que fica olhando o deambulante, o amante perdido, sem rumo e sem prumo, barco sozinho no meio do oceano lunar, é só olhar, lá está ela, a bem-amada dormindo no céu com os braços para cima, linda axila, macio feno, suave veneno de paixão, ó não, Nossa Senhora de Paris, Nossa Senhorazinha de Paris, rogai por mim porque a coisa está ruim, ela está longe eu sigo nessa névoa de luminosos astros e choro ao ver um rio que corre, uma estrela que morre, um mendigo que dorme, um cão que faz amor com uma cadela de olhos úmidos, túmidos seios, negro vórtex, meu amor, Notre Dame de Paris, Notre Dame de Partout, aqui estou eu, lembrai-vos, diante de vossa portada maior, o santo de cabeça cortada me espiando sofrer a angústia da espera vem não vem o homem me oferece cartões-postais de mulher nua pensa que eu sou americano eu sou é brasileiro do Rio de Janeiro onde mora a minha amada numa colmeia a beira-parque fazendo há dois mil anos mel de amor com que adoçar todas as minhas mágoas, ó águas do Sena revoltas, minha amada está serena porque nós viemos de muito, muito, muito longe para nos encontrar, atravessamos os lagos da infância, cruzamos os desertos da adolescência, galgamos as montanhas da mocidade e aqui nesta cidade nos encontramos uma só vez, o mês era março, e nos reencontramos em abril novecentos e sessenta luas depois na rue Pierre Charon e ela entrou pelos meus olhos, banhou-se no meu cristalino, acendeu-me a íris e postou-se como santa Luzia no nicho de minhas pupilas oferecendo-me os próprios olhos numa salva de prata e pôs-se a comer devagarinho minha cabeça enquanto eu não sabia o que lhe dissesse só pedia vem comigo vem comigo mas ela não podia porque não era o dia mas lá vem ela de táxi entrou na Île de la Cité, rodeou a praça, que graça é ela, vai saltar, não eu que vou com ela, adeus Notre Dame de Paris, Notre Dame de l’Amour, iluminai vossos vitrais, levantai âncora ó galera gótica dos meus martírios vossos santos aos remos o Corcunda no mais alto mastro Jesus na torre de comando e buscai serenamente o grande caudal no qual me abandono náufrago coberto de flores em demanda do abismo claro e indevassável da morte, Saravá!
Montevidéu, 1959
Notas
1 Reportagem lírica de uma cidade por demais conhecida e por demais cantada, mas que acontece ser a favorita, depois do Rio de Janeiro, no coração de um poeta carioca que aliás se chama VINICIUS DE MORAES.
2 Cícero Dias, imigrado para Paris dois anos antes.
3 O ex-Paymaster General do Gabinete Macmillan.
4 Oficial aviador, morto em combate na Batalha de Londres. Maudling me chamava “Mil-réis” e eu o chamava “Half-a-crown”, pelas moedas de nossos países.