Prosa dispersa


Retrato de Jayme Ovalle

RETRATO DE JAYME OVALLE

 

Um dia, em Los Angeles, certa amiga me disse: O homem que eu mais vontade de conhecer tenho no mundo chama-se Jayme Ovalle. Desde então, ouvi muitas vezes a mesma afirmação feitas pelas pessoas mais díspares.

Realmente, as coisas que se contam sobre Jayme Ovalle são do puro domínio do fabuloso. Em Londres, onde estagiava na Delegacia do Tesouro, morava no bairro mais elegante da cidade numa casa mobiliada apenas de uma cama, um harmônio, um violão (instrumento com que compunha) e umas poucas garrafas de uísque. Tinha por companheiro a um macaquinho comprado na travessia do Atlântico porque, dizia ele, “era o único brasileirinho a bordo”.

Da Inglaterra trouxe com ele vários volumes de poesia em inglês, um dos quais chamado The Foolish Bird, e uma irlandesa a que chamava Gringuinha, e que por sua vez o chamava de Tasma porque dele ouvira um dia encantada a palavra Fantasma. Quando residia no Palace Hotel apaixonou-se perdidamente por uma pombinha que se habituara a pousar-lhe no parapeito. Ovalle vinha direto da Alfândega para dar miolinho de pão à sua columbesca bem-amada. Um dia encontraram-no na avenida Rio Branco, na sua sempre empertigada atitude de Embaixador aposentado, a chorar (coisa que faz com a maior naturalidade) por trás do monóculo que então usava “porque encontrara sua pombinha a traí-lo com um miserável pombo”.

Fernando Sabino conta em seu livro de crônicas de Nova York, A Cidade Vazia, que uma vez Ovalle telefonou-lhe pedindo que fosse bem depressa ao seu escritório na Delegacia do Tesouro (situado num dos gigantescos edifícios de Rockefeller Center) porque ele tinha a impressão de que estava no céu. Fernando Sabino partiu de carreira para chegar e encontrar Ovalle todo feliz, rodeado de uma nuvem — uma nuvem mesmo no duro, que encalhara no altíssimo edifício e que Ovalle deixara carinhosamente entrar pela janela.

Uma de suas peculiaridades é ser tio do poeta Augusto Frederico Schmidt, que o chama de Tio Ioiô, como, de resto, seus demais sobrinhos. Sua personalidade extraordinária exerceu influência em muita gente da melhor qualidade, e não é difícil encontrar traços ovalleanos na poesia de Manuel Bandeira, por exemplo. Suas canções, como “Azulão”, “Berimbau” (ambas com versos de Bandeira) e “Três pontos de santo” são um prato dileto de nossas melhores cantoras de câmara, e foram grandemente popularizadas nos Estados Unidos pelo esplêndido álbum da intérprete brasileira Elsie Houston.

 

A Nova Gnomonia

De acordo com uma Teoria do Conhecimento de sua invenção (para maiores detalhes ver o capítulo “A nova Gnomonia”, nas Crônicas da Província do Brasil, de Manuel Bandeira) todos os seres, bichos e coisas existentes podem se classificar em cinco categorias: os Dantas, Parás, Mozarlescos, Kernianos, e Onésimos. Cada categoria tem seu “anjo”, ou protótipo, que também lhe deu o nome. Os Dantas (do “anjo” Francisco Clementino de Santiago Dantas — angelitude aliás contestada por muita gente, que prefere como “anjo” a Pedro Dantas, pseudônimo de Prudente de Moraes, neto) são os puros, desprendidos, os inocentes, os inocentes autênticos. Dantas são Cristo, São Francisco de Assis, a poesia de Manuel Bandeira, o elemento da água. Já os Parás, ou Exército do Pará (nome que vem, sem desdouro para o simpático Estado, da ideia do homem da província que se larga para a capital disposto a vencer na vida a qualquer preço) são a atriz Betty Grable, matéria plástica, Academia de Letras, anel de grau, bolo de aniversário, “café-society”, etc. Os Mozarlescos, cujo “anjo” é o sr. Mozart Monteiro, são, segundo Ovalle, os seres que dizem coisas assim:

“— Se o trem não atrasar, por certo chegará na hora”... — Há, me parece, no conceito ovalleano, um senso de derramamento excessivo em tudo o que é o Mozarlesco diz ou faz, aliada a uma espécie de atração irresistível do lugar-comum. Suicídio em Paquetá é Mozarlesco. Mozarlesco é também o Livro do Bebê, o ator Aldo Fabrizzi, o livro O Coração, de Edmundo d’Amicis, serenata em Ouro Preto, etc. Por vezes, por excesso de Mozarlismo, uma coisa pode ficar “Mozarlesca lacrimejante”, como o livro A Cabana do Pai Tomás ou o grande ator português Villaret. Mas é aqui que — com licença do Mestre — entra o meu pequeno cisma. Para mim, Mozarlesco é isso tudo que se falou, mas é também, num sentido maior, tudo o que é primordialmente coração e vísceras. A vida é para mim a grande Mozarlesca. Mulher também é, em princípio Mozarlesca.

Os Kernianos (do “anjo” Ari Kerner Veiga de Castro) são os impulsivos bem dotados. Manuel Bandeira oferece em suas Crônicas o exemplo do amanuense que deu um pontapé numa mulher grávida, com o resultado de ela morrer e ele acabar tomando conta de toda a sua filharada. Há no cinema dois ótimos Kernianos: os atores James Cagney e Kirk Douglas. Uísque é uma bebida Kerniana. Jazz é kerniano. A Espanha é kerniana. Já a Itália tende mais para o Mozarlesco, o México para o Dantas e os Estados Unidos para o Pará.

Restam os Onésimos, cujo “anjo”, já falecido, é o sr. Onésimo Coelho. São as pessoas ou coisas que têm o dom de esfriar ambientes, de modificar o metabolismo próprio das situações, de deixar as pessoas mal-à-vontade. Padre, por exemplo, é Onésimo. Já frade, tende mais para o Dantas. O ator Basil Rathbone é um grande Onésimo, mas Ovalle afirma que ele é um Onésimo convertido ao Paraísmo.

Assim é a Gnomonia de Jayme Ovalle, e assim é o próprio Ovalle: ser fundamentalmente bom, justo e autêntico, embora haja quem o ache um extravagante, um fiteiro e mesmo um cabotino. Nada mais errado.

 

Revista Flan, 17 de maio de 1953

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