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O outro
Vinicius de Moraes
Poesia

O OUTRO


Às vezes, na hora trêmula em que os espaços desmancham-se em neblina
E a gaze da noite se esgarça suspensa na bruma dormente
Eu sinto sobre o meu ser uma presença estranha que me faz despertar angustiado
E me faz debruçar à janela sondando os véus que se emaranham dentre as folhas...
Fico... e muita vez os meus olhos se desprendem misteriosamente das minhas órbitas
E presos a mim vão penetrando a noite e eu vou me sentindo encher da visão que os leva.
Vozes e imagens chegam a mim, mas eu inda sou e por isso não vejo
Vozes enfermas chegam a mim — são como vozes de mães e de irmãs chorando
Corpos nus de crianças, seios estrangulados, bocas opressas na última angústia
Mulheres passando atônitas, espectros confusos, diluídos como as visões lacrimosas.
E de repente eu sou arrancado como um grito e parto e penetro em meus olhos
E estou sobre o ponto mais alto, sobre o abismo que desce para a aurora que sobe
Onde na hora extrema o rio humano se despeja vertiginosamente e de onde surgirá
Lívido e descarnado, quando o pálido sangue do Sol morrendo escorrer da face verde das montanhas.

Mas por que estranho desígnio foi diferente a angústia daquela manhã tristíssima
Por que não vieram até mim as lamentações de todas as madrugadas
Por que quando eu caminhei para o sofrimento, foi o meu sofrimento que eu vi estendido sobre as coisas como a morte?
Ai de mim! a piedade ferira o meu coração e eu era o mais desamparado
O consolo estava nas minhas palavras e eu era o único inconsolável
A riqueza estivera nas minhas mãos e eu era pobre como os olhos dos cegos...
Na solidão absoluta de mil léguas foi o meu corpo que eu vi acorrentado ao pântano infinito
Foi a minha boca que eu vi se abrindo ao beijo da água ulcerada de flores leprosas.
Dormiam sapos sobre a podridão das vitórias moribundas
E vapores úmidos subiam fétidos como as exalações dos campos de guerra.
Eu estava só como o homem sem Deus no meio do tempo e sobre minha cabeça pairavam as aves da maldição
E a vastidão desolada era grande demais para os meus pobres gritos de agonia.
De fora eu vi e senti medo — como que um ávido polvo me prendia os pés ao fundo da lama
Eu gritei para o miserável que erguesse os braços e buscasse a música que estava no pântano e na pele desfeita das flores intumescidas
Mas ele já nada parecia ouvir — era como o mau ladrão crucificado.

Oh, não estivesse ele tão longe de meus pés e eu o calcaria como um verme
Não fosse minha náusea e eu o iria matar no seu martírio
Não existisse a minha incompreensão e eu lhe desfaria a carne entre meus dedos.
Porque a sua vida está presa à minha e é preciso que eu me liberte
Porque ele é o desespero vão que mata a serenidade que quer brotar em mim
Porque as suas úlceras doem numa carne que não é a dele.
Mas algum dia quando ele estiver dormindo eu esquecerei tudo e afrontarei o pântano.
Mesmo que pereça eu o esmagarei como uma víbora e o afogarei na lama podre
E se eu voltar eu sei que as visões passadas não mais povoarão os meus olhos distantes
Eu sei que terei forças para comer a terra e ficar escorrendo em sangue como as árvores
Parado diante da beleza, agasalhando os príncipes e os monges, na contemplação da poesia eterna.

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