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RETRATO DE PORTINARI
Com o próximo casamento e partida para a Europa de minha filha Susana, andei arquitetando um meio de extorquir-lhe o meu retrato feito por Candinho Portinari em 1938, que ora lhe pertence, de que muito gosto e que deve ter, aliás, na obra do pintor, uma certa importância, pois foi o primeiro, ao que eu saiba, realizado com inteira liberdade, depois da grande série de “retratos sociais” (chamemo-los assim sem qualquer desdouro, nem para o artista, nem para os retratados) que ele andou pintando de alguns membros ilustres de nossa sociedade e de nossa inteligência. Lembra-me mesmo que ao me propor fazê-lo, sabendo que eu estava de partida para a Inglaterra, Candinho sugeriu-me, com aquela eterna rabugice sua, que eu o deixasse pintar livremente, pois estava um pouco cansado do gênero de retratos que fazia e que tanto afagavam a vaidade da maioria dos retratados. Sei que em duas poses, em sua antiga casa das Laranjeiras, o retrato estava pronto e era como se se respirasse um novo ar dentro dele. Dias depois, estando eu no cais para embarcar em minha primeira grande viagem, chega ele sobraçando o retrato, que me vinha oferecer.
A razão por que eu andei arquitetando extorquir o retrato a minha filha é simples: é que a minha Bem-Amada foi também retratada por Portinari nessa fase a que chamei “social”, e eu muito gostaria de ver um dia nossos retratos juntos na parede, as técnicas brigando um pouco, mas juntos na parede, como deve ser. Mas a primogênita foi inflexível, no egoísmo do seu amor filial. Cheguei mesmo à baixeza — sabendo que ela andava precisada de um dinheirinho para as miudezas do seu casamento — de propor-lhe comprar o quadro; mas a proposta a indignou sobremaneira, coisa que, no fundo, satisfez também meu orgulho de pai quanto ao seu bom caráter. Sugeri-lhe que ela o deixasse em consignação, durante o que ainda me restar de vida; pois sendo uma jovem de dezenove anos, e eu um homem de quarenta e cinco, às portas de tornar-me avô, o normal é que ela me facilitasse, diante do pouco tempo que me resta, essa pequena satisfação de juntar na mesma parede dois Portinaris que se amam, enquanto que a ela caberia muito mais tempo para usufruí-lo. Mas, sem ceder um palmo, a primogênita observou-me que nós, que temos Mello Moraes no sangue, somos gente muito longeva, e pode acontecer que, ao “abotoar o paletó”, como se diz por aí, eu esteja na casa dos noventa, como aconteceu com meu avô paterno. Obtemperei-lhe que fumo desde os catorze e bebo uísque desde os vinte e cinco, além de outras extravagâncias, e que o provável é que as coronárias, ou o fígado, mostrem antes disso os sinais do seu repúdio a esses excitantes. Mas minha filha retrucou-me no mesmo diapasão que meu avô fazia pior que isso: comia feijoada e peixadas “caindo de pimenta”, na avançada idade de oitenta anos, e que, a fiar-se na minha conversa, ela corria o risco de só entrar em posse do retrato quando macróbia ela própria, o que lhe subtrairia o prazer de dizer-se, enquanto moça, possuidora de um bom Portinari, ainda mais tratando-se do retrato do “meu pai”.
Embora tudo isso me tivesse deixado na maior consternação, suportei com o estoicismo de sempre essa nova prova de rebeldia dos filhos modernos, lembrando-me de que há meio século poderia perfeitamente reaver o retrato com dois berros e uma boa bolacha. Mas não há de ser nada. Pode levar o quadro para Marselha, filhinha… Conte vantagem para suas amigas de que você tem o retrato do seu pai pintado por Portinari. Os filhos modernos são assim mesmo — não conhecem mais a beleza da verdadeira devoção filial. Mas também eu lhe digo uma coisa: aproveite rápido do retrato, porque breve essa sopa vai acabar, e o antigo e sadio costume da palmatória voltará a prevalecer. E para começo de conversa, me faça o favor de agora em diante só dirigir-se a mim de olhos baixos e tratando-me de “senhor meu pai”!