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ORFEU NEGRO
Graças à gentileza do convite de Maria Oliva Fraga, a bela guardiã do Château d’Eu, aqui estou eu no vasto castelo de tijolos e colunata de pedra — obra sem grande interesse arquitetônico iniciada por Henrique de Guise e restaurada pelo conde d’Eu três séculos e pouco mais tarde, depois do incêndio do começo deste século. O parque, desenhado por Le Nôtre, é realmente belo. Vim para terminar a primeira adaptação para o cinema de minha peça Orfeu da Conceição, de que o produtor Sacha Gordine quer extrair um filme. Depositamos ambos grandes esperanças no projeto.
Para ajudar-me no trabalho estão comigo minha amiga e secretária Josée Fauquier e seu marido, Daniel. E, naturalmente, minha filhinha Georgiana: a carinha mais marota que já se viu em qualquer latitude. O diabo é que ela, com tanta graça, me está perturbando consideravelmente na tarefa. Pois não me posso impedir de, a todo instante, perder o fio do ditado para vê-la atravessar o parque correndo, ou surgir pela mão de sua babá espanhola — pequeno bichinho inconfundível contra o gótico normando da igreja de Saint Laurent, em cuja cripta dormem sobre os próprios despojos, lado a lado, em seu misterioso sono de mármore, as estátuas funerárias dos príncipes e princesas da família d’Artois.
É coisa apaixonante criar um filme. Nesta adaptação construo o filme como eu o faria. Ao contrário de minha peça, em que a “descida aos infernos” de Orfeu situa-se numa gafieira, no segundo ato, estou transpondo o carnaval carioca para o final do filme, como o ambiente dentro do qual a Morte perseguirá Eurídice. Josée me ajuda com o maior entusiasmo, mas é necessário a todo instante interromper o trabalho, pois Georgiana não dá uma folga.
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Há homens que são da raça dos minotauros. Homens como Picasso, como Buñuel, como Hemingway. Sacha Alexandre Gordine é assim. Ao me pôr ao trabalho está, eu sei, numa das maiores bancarrotas da história do cinema. O grande e humaníssimo filme que deveria fazer, L’Affaire Seznec, teve a sua filmagem proibida quando todos os contratos já haviam sido firmados. Mas eu confio em Gordine. Há, para quem sabe ler no rosto humano, uma profunda bondade nesse homem. Bondade e uma força interior que se pode quase palpar.
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Hoje o guia turístico do castelo veio queixar-se de que, ao mostrar aos visitantes uma das belas carruagens em exibição no andar térreo, qual não é sua surpresa, e a dos turistas, quando a porta da caleça se abre e surge, de entre sedas e alfaias, a carinha matreira de Georgiana. Ele me contou o caso com a compunção de um guia de castelo que presenciou um sacrilégio, e eu o ouvi com o ar severo que deve ter no caso o pai da sacrílega. Mas ao voltar-lhe as costas desatei a rir; e vi que ele também sacudia os ombros de tanto riso, enquanto descia as escadas.
Estou em pleno carnaval no filme. Procuro dar o máximo de colorido ao roteiro para que, no caso de uma segunda adaptação, o novo roteirista sinta a animação popular em toda a sua vibração. Na rápida viagem que fizemos ontem a Rouen, surgiu-me a ideia de fazer as mulheres — as Fúrias do mito — matarem Orfeu num parque ou jardim noturno, onde o músico fosse ter levando nos braços sua amada morta. A estudar.
Acabei de ver uma coisa deliciosa. Enquanto vinha vindo pelo corredor, vi Georgiana que subira no espaldar de uma poltrona e mirava com a maior atenção, bem de perto, um retrato de dom Pedro II. Depois ela afastou um pouco a cabecinha e começou a alisar as venerandas barbas do imperador. Não contente, chegou a carinha ao retrato e deu-lhe um prolongado beijo.
Juro que vi sorrir o bom monarca.
Eu, agosto de 1955