Peças teatrais
POBRE MENINA RICA
Sonho bom1
De todos os modernos compositores brasileiros, sem distinção entre populares e eruditos, Carlos Lyra é o que me parece mais bem aparelhado para escrever música para teatro. E não foi à toa que eu — depois de ouvir e mais ouvir um excelente conjunto inédito de sambas e canções que o meu querido parceirinho deixara em meu gravador, aí pelos meados de 1962, para que eu neles pusesse letras — dispus-me firmemente a resgatá-los de se tornarem mais um LP lançado ao comércio, do qual resultariam, com um pouco de sorte, dois ou três sucessos, e olhe lá. Diante da particular intercomunicabilidade das músicas, do elemento teatralizável de suas harmonias, de sua expressão modularmente cênica, com as melodias como a pedirem personagens que as materializassem em sentimentos e desejos, não havia como hesitar. Em dois ou três dias nascia a história da Pobre Menina Rica que se apaixona pelo Mendigo-Poeta, num terreno baldio da cidade, onde um curioso grupo de pedintes vive feliz dentre um sistema bastante sui generis. E em cerca de duas semanas de trabalho constante, a dois, tínhamos dois terços das canções feitas e aprovadas. Tratava-se apenas de ligá-las com diálogos e danças, e viva a primeira comédia musicada brasileira em grande estilo! Um sonho por demais bom, e que duvido algum compositor sem deformações de erudição não tenha jamais sonhado.
E é aí que entra Aloysio de Oliveira. Aloysio é um homem terrível. Em setembro de 1962, estando eu posto em sossego — eu que jamais houvera cogitado em pisar como showman um palco de boate —, chega Aloysio e nos joga a Antônio Carlos Jobim, a João Gilberto e a mim, com a participação especial de Os Cariocas, num show que realmente pegou a cidade de surpresa, e conseguiu reinventar o movimento da bossa-nova, diante da sua repercussão nacional e internacional. Seis meses depois, sem medo de repetir um artista (no caso, eu) num tão curto intervalo, Aloysio, sabedor do projeto da Pobre Menina Rica, repete o feito: um trailer do primeiro ato da peça, num experimento inteiramente inédito no Brasil e creio que no mundo, em matéria de show.
As luzes da boate Au Bon Gourmet se apagavam, nós entrávamos pé ante pé, quase em trevas totais. Eu ia sentar-me à minha cátedra improvisada, onde, o texto em mão, esperava, como quem espera o tiro de uma 45, o foco de luz que incidia sobre mim. O conjunto atacava suavemente a “Marcha do amanhecer’’, eu pegava discretamente o copo de uísque que tinha à mão, tomava aquele gole e começava: “Imaginem um grande terreno baldio contra o panorama tentacular da cidade ao longe...”
Ao lado sentia a torcida de meus dois companheiros de show: Nara Leão, no papel da Pobre Menina Rica, e Carlinhos Lyra, no do Mendigo-Poeta. E durante cinco semanas a mocidade carioca e de outros estados, que nunca deixara de nos prestigiar, desde as primeiras raízes do movimento da bossa-nova, comparecia diariamente para nos ver. Não há de minha parte, nem creio que da parte de Carlos Lyra, nenhuma vaidade, senão orgulho e satisfação, no reconhecimento desses fatos. A nossa comédia musicada, cujo libreto está atualmente no capricho, num futuro não superior a um ano, quando as minhas funções de funcionário do Brasil no exterior o permitirem, estará pronta para ser encenada.
Roma, novembro de 1963
[Não se sabe ao certo o motivo pelo qual Vinicius não concluiu o seu musical. Mas certamente sua atribulada vida afetiva contribuiu bastante para isso. Enquanto escrevia a comédia, começa a namorar Nelita Rocha, versão carne e osso da Pobre menina rica, e diante das dificuldades com a família dela, resolve seguir com seu novo amor para a Europa, onde tentou, sem resultado, retomar o trabalho. Terminara apenas o texto do trailer, que ele mesmo havia narrado no show da boate Au Bon Gourmet e que depois Napoleão Moniz Freire leria na Maison de France, substituindo o poeta que se refugiara em Paris. O texto que segue é uma tentativa de reconstituição do trailer, feita a partir das versões conservadas por Vinicius, por Carlos Lyra, e do texto estampado na contracapa do LP Pobre Menina Rica, gravado em 1972 por Carlos Lyra, Dulce Nunes, Moacir Santos, Catulo de Paula e Thelma, com direção musical de Radamés Gnatalli, para Discos CBS]
Trailer
Imaginem um grande terreno baldio carioca entre fundos de arranha-céus contra o panorama tentacular da cidade ao longe. Nesse baldio, a miséria e essa necessidade tão grande (e tão pouco praticada) que tem o ser humano de se comunicar reuniram uma estranha comunidade numa forma de sociedade bastante sui generis: uma comunidade de mendigos que, sob a liderança de um Mendigo-Chefe, parte todas as manhãs para o trabalho de pedir esmolas que reverterão a uma caixa comum. São mendigos de várias cores e procedências e que, dentro de um mundo que não só os criou como aceita com indiferença o fato de sua existência, encontraram essa curiosa forma de viver em sociedade e se auxiliar mutuamente.
Agora imaginem a madrugada começando a raiar sobre os miseráveis casebres improvisados com madeira de caixotes, barro, lataria, tudo enfim que constitui o material de construção dos párias. Imaginem ouvir o entrechoque das garrafas de leite que o leiteiro começa a depositar nas portas dos edifícios dos mais bem aquinhoados. Imaginem as janelas de serviço começando a se abrir e as empregadinhas aparecendo nas áreas de fundo para dar início ao labor cotidiano. Imaginem ouvir o contracanto de todas essas vozes entoando a “Marcha do amanhecer”. É a hora em que acorda Carioca, o Mendigo-Chefe: um crioulo todo grande, todo gótico, de pé 44 e dentadura cintilante. Imaginem ele saindo do seu casebre com sua perna de pau que em nada o invalida nem para o amor, nem para o samba. Lá vem ele, saindo felino como um leopardo negro, afastando o mar invisível do espaço com os remos dos braços, como que apoiado no ar. Ah, que preguiça acordar... A noite foi boa, no colo quente de Maria-Moita, sua companheira. Carioca canta a canção do seu despertar para um dia novo, enquanto Maria-Moita prepara o café e os demais mendigos começam a acordar também.
CARIOCA, acompanhado de Coro, canta “Samba do Carioca”
Há alguém que durante a canção observa de longe atentamente. É um mendigo novo que chega, ninguém sabe de onde, com sua roupa em farrapos, e um violão a tiracolo. Trata-se de um boa-pinta terrível, cujo charme e dignidade se destacam mesmo de sua pobre indumentária. Seu olhar é o dos homens que alcançaram a própria verdade, ao mesmo tempo destemeroso e nobre. Ele se aproxima do casebre onde Carioca, ao lado de sua companheira Maria-Moita e uns poucos mendigos, distribui as ordens do dia. Ele, o poeta, é o artista, o elemento que faltava àquela comunidade. Mas entrar para ela não era mole não. Muito mendigo já tinha ganho bolinha preta ao pedir inscrição naquele clube.2 Carioca pede-lhe que apresente suas credenciais. O Mendigo-Poeta, na sua qualidade de menestrel, de homem que nunca esmolava e que recebia apenas o óbolo que lhe davam pelas suas canções, canta este samba, que é o seu cartão de visita.
MENDIGO-POETA canta “Cartão de visita”
Carioca olhou o Mendigo-Poeta, por um tempo não disse nada, aí fez cara de quem duvida, olhou de novo, resolveu e disse: “Tá!”. O Mendigo-Poeta tinha sido aceito como novo membro daquela estranha comunidade, que adota um socialismo primitivo para viver. Todos têm que colaborar para um fundo comum, por meio do qual são comprados os mantimentos com que Maria-Moita faz a boia para todo mundo.
Imaginem agora que num dos mais belos apartamentos da redondeza, ao lado do terreno baldio, mora um lindo broto como um passarinho dentro de uma gaiola dourada. É a Pobre Menina Rica, um fruto dos tempos que correm, com pai antigo, mãe apavorada e irmão primeiro da classe. É triste dizer, mas ela acha a própria família profundamente chata. A jeunesse dorée que a frequenta e com quem ela vai a festinhas e ao banho de mar no Castelinho deixa-a perfeitamente isenta. Ela sonha um amor lindo nos braços de um homem verdadeiro que nunca vem. É essa Pobre Menina Rica que, de sua sacada, canta sua tristeza e solidão, ao ver voar um passarinho em liberdade.
POBRE MENINA RICA canta a canção “Pobre Menina Rica”
Mas eis que o Mendigo-Poeta fica siderado. É a Pobre Menina Rica que volta da praia num biquini exíguo, a mostrar quase todas as suas graças de broto em flor. Ele não resiste e faz: fiu-fiu. A Pobre Menina Rica pára estupefata. Nunca, em sua vida, tinha ela visto tamanha ousadia. Um vagabundo daquela espécie assobiando para ela! Aquilo era demais. Ela dá uma tremenda bronca no Mendigo-Poeta, que sorri com displicência, como que inteiramente superior a todos aqueles desaforos. Quando ela vai saindo, o Mendigo-Poeta canta logo essa marchinha de gozação que a faz estacar chocadíssima: a audácia!
MENDIGO-POETA canta “Broto triste”
Mas a natureza feminina tem razões que a razão desconhece. A marchinha em que a Pobre Menina Rica se vê tão cruamente retratada faz com que ela se interesse muito mais do que poderia supor pelo Mendigo-Poeta. Sem saber como, ela começa a amá-lo. E ele, penetrado da graça da Pobre Menina Rica, não tira mais os olhos da sua janela. Começa a nascer entre ambos um namoro, o chamado namoro a olho, que cria raízes no coração. Um dia, enclausurados no seu amor, manifestam seu profundo langor de amar e a necessidade que têm os seres amados de comunicar-se com a chegada da primavera.
MENDIGO-POETA e POBRE MENINA RICA cantam “Primavera”
Decididamente aquela comunidade tendia a aumentar de população. Ao cair da tarde de um novo dia chega um novo mendigo, tão miserável, tão miserável, que inspira pena aos outros mendigos. É um pau-de-arara que resolve, sem mais eira nem beira, na maior dureza do mundo, ver se encontra abrigo no meio daquela gente, sua irmã na miséria. Carioca, o mendigo líder, pede-lhe, como faz sempre, que conte a sua história, que é ao mesmo tempo uma história de miséria e de otimismo, porque o mendigo Pau-de-Arara, apesar das adversidades que enfrentou, não deixa nunca fenecer no seu coração a flor da confiança nos seus semelhantes, uma sadia dose de otimismo com relação ao ser humano.
PAU-DE-ARARA canta e diz o recitativo da canção “Pau-de-arara” (O comedor de giletes)
Mas o acontecimento definitivo que faz a Pobre Menina Rica apaixonar-se irremediavelmente, irresistivelmente, pelo Mendigo-Poeta é uma discussão que ela assiste de sua sacada entre o seu amado e dois outros mendigos. Um, o homem prático na vida, o que acha que a poesia e a música são desnecessárias e que só o trabalho material constrói e dá lucro. E o outro, um mendigo ladrão, que optou pela facilidade do furto. Essa discussão, cuja resposta está no samba que o Mendigo-Poeta canta agora, gama definitivamente a Pobre Menina Rica e o faz crescer a seus olhos, como um verdadeiro herói.
MENDIGO-POETA canta “Sabe você?”
O Mendigo-Poeta tomou o elevador, subiu, gostando da aventura. Uma das poucas profissões no mundo em que as pessoas não costumam subir de elevador é a de mendigo. Tocou a campainha e foi a Menina Rica que atendeu. Não disseram uma palavra, eram tão distantes, não tinham nada para dizer. No entanto, aquele dia quando ela olhou o céu, notou que era azul. O tédio da Menina Rica tinha sumido e agora cada objeto possuía sua significação: o amor tinha chegado, após longa espera.
POBRE MENINA RICA canta a “Canção do amor que chegou”
Por sua vez a Pobre Menina Rica veio a conhecer Maria-Moita. Simpatizou muitíssimo com o seu jeitão. Uma bela mulata baiana, calada e positiva como o nome indica. Maria-Moita também simpatizou muitíssimo com a Pobre Menina Rica, trocam confidências, e verdade por verdade, conta-lhe sua história que é sua filosofia, neste samba que se segue.
MARIA-MOITA canta a canção “Maria-Moita”
Agora começa a acontecer tanta coisa que as canções param um pouco. Num dos edifícios que cercavam o baldio morava uma mulher tão rica que todas as vezes que brigava com o marido jogava pela janela joias valiosíssimas, querendo demonstrar com isso seu desinteresse pelos valores terrenos. O observador e posteriormente aproveitador daquele insólito fenômeno era um mendigo, ainda não apresentado nesta história, de nome Num-Dô. Num-Dô era pessoa zelosa de seus parcos bens, como sugere o apelido que lhe puseram. Talvez, em outras condições, ele tivesse sido milionário, um magnata, dono de muito mais coisa que Num-Dô sequer podia imaginar. De qualquer modo, ele possuía sua fortuninha dentro de uma mala velha, cuidadosamente escondida no fundo de um cano de esgoto. Muito bem, um dia Num-Dô morreu. A mala foi aberta sob olhares espantados. E todos ficaram quase tão ricos quanto a Pobre Menina Rica.
O terreno baldio ganhou movimentação e nele construíram um edifício quase tão alto quanto o da Pobre Menina Rica. O Mendigo-Poeta perdeu parte do seu título e virou somente Poeta. Neste momento da história, porém, acontece a segunda incoerência da psicologia feminina. A Menina Rica, tão apaixonada, preferia, no entanto, que seu amor fosse pobre. E desamou-o por causa do enriquecimento. Por quê? Nem ela sabia. Nem o Mendigo, nem o Poeta, que então canta a sua desventura.
POETA canta “A minha desventura”
Talvez, na realidade, essa história terminasse aqui. Mas é preciso que ela tenha um epílogo, mesmo que nenhum de nós acredite nele. Deixemos que o Poeta dispa suas vestes de rico e, como Mendigo, apareça diante de sua amada e com ela faça as pazes. Tiremos por um momento nossos pés do chão e deixemos que os dois, o Mendigo-Poeta e a Pobre Menina Rica, na grandeza de seu amor, terminem essa fábula juntos e felizes para sempre.
Imaginem que o Mendigo-Poeta, que, como todos viram, tem o estofo de um verdadeiro gentleman, convide sua bem-amada para jantar com ele diante de seu casebre, ao luar, numa mesinha improvisada com um caixote velho e o resto conseguido à base de despachos encontrados pelas encruzilhadas da cidade: uma galinhazinha com uma farofinha amarela, uma cachacinha, uma velinha acesa para tornar o ambiente mais romântico. A Pobre Menina Rica fica ainda mais apaixonada. Nunca em sua vida tinha visto tamanho cavalheirismo. Cantam então juntos a “Valsa-dueto”, num langoroso pas-de-deux.
MENDIGO-POETA e POBRE MENINA RICA cantam a “Valsa-dueto”
E aqui termina o pequeno trailer de nossa comediazinha musicada. Esperamos que a história que Vinicius, o poeta, imaginou acontecer entre um mendigo pobre e rico e uma menina rica e pobre, e que Carlos Lyra musicou, tenha deixado em vocês todos um gostinho bom que os leve a querer revê-la quando for encenada.
[A peça Pobre Menina Rica jamais foi concluída. Mas dela restaram o primeiro ato quase completo e o esquema com anotações que permite arriscar sua reconstituição. Ei-la:]
Pobre Menina Rica
Comédia musicada brasileira escrita por Vinicius de Moraes com música de Carlos Lyra
Personagens
Carioca, o líder da comunidade dos mendigos. Um negro de mais ou menos quarenta anos, magro, miúdo e meio mal-humorado, se possível com uma perna de pau.3 Trata-se de um indivíduo altamente inteligente, além de astuto e sensual. Domina os outros pela virilidade de seu caráter, sem ter que elevar a voz, conseguindo tudo o que quer por meio da persuasão diligente e de um certo modo de olhar dentro dos olhos das pessoas que as faz baixar os seus. Sua voz deve ser a de um bom barítono da terra, com uma qualidade qualquer de preguiça e voluptuosidade.
Maria-Moita, sua mulher. Uma baiana quieta, como o nome indica, bem-feita, com um bonito rosto e magníficos olhos, e toda a qualidade e força telúrica da Bahia em seu temperamento, e no seu modo de fazer as coisas. Ela é uma mãe-de-santo, aí pelos trinta anos. Sua voz deve ser a de um contralto popular. Exerce a liderança entre as mulheres, estabelecendo os menus e a administração da comunidade.
Mendigo-Poeta, um sujeito de aparência nobre, aí pelos vinte e cinco. Alto, magro e com um modo aristocrático de ser. Veste seus trapos com uma espécie de elegância. Traz sempre o violão a tiracolo. Sua natureza independente e orgulhosa não o deixa mendigar como seus outros companheiros. Ele canta nas ruas e recebe o que lhe dão em troco de suas canções. Voz de um barítono suave, com um bom alcance, ele deve ter um estilo bossa-nova de cantar.
Pobre Menina Rica, uma menina linda, mas por vezes estourada e voluntariosa, aí pelos dezoito anos. Muito rica, mas desgostosa da vida que leva. Esta revolta contra seu ambiente provoca nela um comportamento social tipicamente mecânico. Ela sonha, evidentemente, com o príncipe encantado que virá algum dia levá-la da tediosa atmosfera em que vive para um mundo de beleza e fantasia.
Mendigo Paulista, que acredita, antes de mais nada, em ser prático na vida. Na comunidade dos mendigos é o que fatura mais do ponto de vista financeiro. Veste-se e se apresenta também melhor, e se distingue pelo seu modo de falar e agir.
Pau-de-Arara, um mendigo nortista, também cantor, que sempre traz uma viola consigo. A despeito de seus altos e baixos, conserva um sadio otimismo em relação à vida e um fatalismo que o leva a viver para a frente, sem fazer muitas perguntas sobre sua existência. Mendigo Ladrão, o que optou pela facilidade do roubo contra o labor da mendicância. Sua filosofia é que o que está à mão pertence a ninguém.
Mendigo Gaúcho, um mendigo cheio de bravata, extrovertido, inadaptado. Está sempre falando sobre o dia em que partirá a cavalo, ou então contando inúmeras aventuras nas quais ele é sempre o perfeito herói.
Num-Dô, o mendigo avarento. Um personagem em que não se pode confiar, melífluo, solitário. É um homem silencioso, mas sempre presente em todo os acontecimentos: ouvindo quando não deve e depois voltando à sua toca para tirar as próprias conclusões. Ele encara seus companheiros mendigos com indiferença. As mulheres da comunidade sempre têm um olho nele.
Mendigo-Candango, um remanescente da construção de Brasília. Um mendigo pobre e idealista, que está sempre a falar e sonhar com a cidade do futuro.
Mendigo-Espião, um tira que finge ser mendigo.
Baby-Dourado, um velho milionário, que mora em um dos grandes apartamentos do edifício onde vive a Pobre Menina Rica.
Susete, sua amante. Uma linda vigarista loura, que se aproveita da paixão do velho industrial para dele extorquir dinheiro e joias valiosas.
Mulheres Mendigas, companheiras de todos os mendigos, com exceção de Pau-de-Arara e Num-Dô, que cuidam de seus barracos e operam administrativamente sob a supervisão de Maria-Moita.
Mendigos secundários, comparsas.
Leiteiro.
Agentes policiais.
Operários da construção.
Empregadas, que aparecem eventualmente nas áreas dos apartamentos.
Tempo
O presente
Arquitetura, cenários e coisas
A cenografia principal é a do baldio: um vasto terreno cerca do mar, que não se vê, encravado entre apartamentos dispostos irregularmente, às vezes deixando vãos entre eles, o que permite distinguir a silhueta da cidade ao longe. Um lance de rua foge diagonalmente da esquerda baixa para a alta. Todos os parlamentos dão fundo para o baldio. No terreno disponível, uma meia dúzia de casebres feitos com não importa que material: vale tudo. Até um enorme pedaço de cano de esgoto, ali abandonado, serve de residência aos mendigos posseiros que invadiram o local.
A arquitetura do cenário, particularmente no que concerne aos barracos dos mendigos, é de importância fundamental para caracterizar suas personalidades. A habitação de Carioca e Maria-Moita, por exemplo, deve conter toda a graça e riqueza imaginativa dos barracos das favelas do Rio. Já a moradia do Mendigo Paulista se caracteriza pela funcionalidade, enquanto Num-Dô mora no cano de esgoto. Mas o Pau-de-Arara e o Mendigo Gaúcho usam simples tendas de campo, sob as duas únicas árvores que há em cena. O Mendigo-Poeta dorme não importa onde, o violão como travesseiro.
A engenhosidade dos mendigos, reflexo do talento de improvisação do povo brasileiro, deve criar no palco uma série de inventos por meio dos quais eles possam tirar proveito de alguns dos confortos modernos: por exemplo, um espelho que reflete a televisão de um apartamento; um salão de beleza das mendigas, para alisar seus cabelos; uma velha caixa que serve de banheiro, onde eles usam a água desviada de um dos apartamentos.
A comida é feita por Maria-Moita num velho fogão a lenha, e distribuída em horas determinadas, que são anunciadas por batidas num triângulo de ferro. A roupa é lavada individualmente pelas mulheres pelo antigo processo das tinas de lavar. Todas estas coisas devem contrastar graciosamente com a riqueza dos apartamentos vizinhos. O quarto da Pobre Menina Rica deve ser exatamente o de uma menina da alta sociedade, que não tem problema na vida. Indicações de afetividade e romantismo devem ser dadas por pequenos detalhes ou objetos, aos quais ela está sentimentalmente ligada, a fim de fugir do tédio de sua vida: bonecas, bichos de pelúcia etc.
Primeiro ato
CENA 1
Ao abrir-se o pano, a noite começa a desfazer-se em aurora. A manhã surge no palco vazio, iluminando gradualmente as habitações dos mendigos e os edifícios de apartamentos em volta, dentre os quais dois estão ainda em construção. O tema da “Marcha do amanhecer” aparece inicialmente ad libitum, a melodia executada por apenas um instrumento e se desenvolvendo à medida. Quando já se principia a perceber as coisas ouve-se o barulho do carro do leiteiro, com o bater característico das garrafas que são depositadas. O leiteiro surge na rua da esquerda, ao mesmo tempo em que, pouco a pouco, certas janelas de fundo das áreas de serviço vão se abrindo, denunciando o despertar das empregadas que aparecem para dar início aos labores do novo dia. Os operários também começam a chegar aos edifícios em construção e iniciam as diferentes tarefas, alguns subindo em precários ascensores pelos flancos externos dos edifícios, cujas empenas vão pintar, outros passando tijolos de mão em mão; todos de shorts, ocupados com seus serviços. O leiteiro é quem deve começar a cantar a marcha, passando então para as empregadas e depois para os trabalhadores até que seja criado um contraponto de vozes que vai num crescendo. A luz do palco também deve ir crescendo em harmonia com o movimento e o canto, até uma explosão de claridade, anunciando o novo dia. No final da marcha, deve apontar o tema do “Samba do Carioca”, indicando o despertar do líder da comunidade.
CARIOCA (cantando o “Samba do Carioca”)
Vamos, Carioca
Sai do teu sono devagar
O dia já vem vindo aí
E o sol já vai raiar4
São Jorge, teu padrinho,
Te dê cana pra tomar
Xangô, teu pai, te dê
Muitas mulheres para amar,
Vai o teu caminho
É tanto carinho para dar
Cuidando teu benzinho
Que também vai te cuidar,
Mas sempre morandinho
Em quem não tem com quem morar…
Na base do sozinho não dá pé,
Nunca vai dar.
CORO (cantando)
Vamos, minha gente
É hora da gente trabalhar
O dia já vem vindo aí
E o sol já vai raiar
CARIOCA (cantando)
A vida está contente de poder continuar
E o tempo vai passando sem vontade de passar.
CORO (cantando)
Eh, vida tão boa,
Só coisa boa pra pensar
Sem ter que pagar nada,
Céu e terra, sol e mar
CARIOCA (cantando)
E ainda ter mulher
E ter o samba pra cantar
O samba que é o balanço
Da mulher que sabe amar...
CORO (cantando)
Eh, vida tão boa
Só coisa boa pra pensar
Sem ter que pagar nada,
Céu e terra, sol e mar
CARIOCA (cantando)
E ainda ter mulher
E ter o samba pra cantar
CORO (cantando)
O samba que é o balanço
Da mulher que sabe amar...
Com o desenvolver da música até o final da primeira estrofe, os mendigos e suas companheiras começam a sair de seus barracos, bocejando, espreguiçando-se, e se aproximam de seu líder. A partir da segunda estrofe da canção, Carioca é secundado por um coro da comunidade. Por este tempo Maria-Moita já fez o café numa grande lata, e uma vez terminada a canção, os mendigos e suas companheiras, numa linha predeterminada, passam em frente de Maria-Moita, que os serve em suas canecas individuais, com uma grande concha, e dá um pão de milho a cada um. Os mendigos tomam o café, e toda esta figuração, que tem o objetivo de estabelecer uma espécie de balé rítmico, deve terminar com os mendigos fazendo uma batucada com as colheres nas canecas, partindo depois para a faina diária, enquanto as mulheres dançam o samba, e lhes dão adeus alegremente. Apenas Carioca permanece em casa para exercer seu trabalho — a liderança da comunidade.
CENA 2
Tendo os mendigos partido, Maria-Moita, que observa a cena, grita às mulheres:
MARIA-MOITA
Eh, suas vadias! Vai começar a pedreira.
MULHER DO MENDIGO PAULISTA
Maria-Moita, qual é o babado hoje?
MARIA-MOITA
Deixe ver, meninas... Hoje é sexta-feira, dia de lavar a roupa suja. Suja, quer dizer... imunda, porque estes caras daqui, vou te contar, hein! O teu ainda não é dos piores... Vamos lá! Peguem suas tinas e o resto do sabão distribuído na semana passada. Azar de quem deixou acabar o sabão que tinha, porque eu avisei que era pra duas semanas!
MULHER DO MENDIGO-CANDANGO
Poxa! E o meu que derreteu na tina? Que é que eu faço, hein, Maria-Moita?
MARIA-MOITA
Que é que você faz? Você pega um Caravelle, não é, minha filha, e vai a Brasília, que você tanto adora, e traz uma barra de sabão de lá... É isso que você faz!
MULHER DO MENDIGO-CANDANGO
Uai, você é mesmo uma graça... Só queria ver você lá, no meio de toda aquela beleza... O Palácio da Alvorada — parece um sonho! A praça dos Três Poderes, com aquela estalta alta e magra que tem lá, até parece você, Maria-Moita! (ri da própria piada)
MARIA-MOITA (meio enfezada)
É melhor alta e magra, que é mulher elegante, que parecendo uma pipa gorda e barriguda feito umas pessoas que eu conheço.
MULHER DO MENDIGO LADRÃO
Deixa ela pra lá, Maria-Moita! É tudo só bafo... Eu queria ver ela lá agora, tendo que andar cinco quilômetros e comer muita da poeira pra comprar um quilo de feijão... Deixa ela pra lá...
MULHER DO MENDIGO GAÚCHO
Por isso não! Tu compra um baio, tu monta nele e não tem distância! Pra cavalo baio não tem distância. Aquilo anda mais ligeiro que um carro. O cavalo é o Volkswagen do gaúcho. Isso é que eu chamo de civilização!
MULHER DO MENDIGO PAULISTA
Ah, sei... Você chama de civilização ficar chupando mate o dia inteiro por um canudinho, comer carne crua e criar calo no traseiro de tanto andar a cavalo... Um bando de selvagens! Civilização é ver um edifício novo a cada cinco minutos, é morar numa cidade que tem mais de um milhão de carros e cinco canais de televisão. São Paulo é uma locomotiva que puxa vinte e um vagões vazios, o resto é conversa fiada.
MULHER DO MENDIGO GAÚCHO
Maria-Moita! Fale com essa intaliana pra ela calar a boca senão eu faço churrasco dela, estou só avisando!
MARIA-MOITA (com autoridade)
Vamos acabar com essa bobagem! Vocês sabem que eu não gosto de muito falatório! Peguem suas tinas e vam’em frente! Enfrentar o lesco-lesco.
MULHER DO MENDIGO-ESPIÃO
Maria-Moita! Hoje é o meu dia de alisar o cabelo...
MARIA-MOITA
Ué, minha filha, pode fazer como quiser. Você não é de nada mesmo... Mas uma coisa lhe digo: se aquele seu homem continuar a cheirar do jeito que ele cheira, vou falar com o Carioca e a gente reúne o condomínio e bota vocês de castigo lá no barraco dos fundos. Você sabe o que isso quer dizer, não sabe? Com todas aquelas goteiras quando chove... Mas você tá pouco se danando! Você só pensa em alisar o cabelo e ir dançar nas gafieiras...
MULHER DO MENDIGO-ESPIÃO
Eu, hein! Cada um cheira como quer...
Ela vai ao cabeleireiro onde uma mulatinha de avental começara os preparativos para alisar sua carapinha.
MULATA DO SALÃO DE BELEZA
É só pra alisar o cabelo ou quer também xampu e massagem facial?
MULHER DO MENDIGO-ESPIÃO
Pode me fazer um xampu de barba-de-bode, viu, neguinha... E me faz também uma massagem com pedra-pomes, porque eu ando com muita espinha. Não sei o que foi que comi que me deixou assim... Tenho passado tão mal, minha filha. Acho que foi o resto daquela galinha que encontrei na lata de lixo ali do 110.
MULATA DO SALÃO DE BELEZA
Ih, querida, se for intoxicação eu conheço uma reza maravilhosa!
Ela lhe passa a fórmula mágica. Dá início então ao violento tratamento no rosto de sua cliente que, de tempos em tempos, grita de dor. Enquanto isso as mulheres aparecem com suas tinas sobre as cabeças, passando sob a bomba d’água, uma bem bolada engenhoca inventada por Carioca — qualquer coisa no gênero da ideia de um cachorro correndo atrás de um gato e com isto fazendo funcionar um sistema hidráulico. As mulheres colocam-se em semicírculo, de costas para o público, e começam a lavar, batendo a roupa. Neste exato momento, o rádio de um dos apartamentos começa um samba “puladinho”, que determina, pouco a pouco, uma espécie de balé das lavadeiras, mas feito exclusivamente com os traseiros das mulheres. É no meio deste balé que entra, violão a tiracolo, o Mendigo-Poeta. Ele fica observando, com um olhar divertido, a curiosa dança das lavadeiras. (Lembrar a possibilidade de aproveitar também, na cena do balé, o expediente das lavadeiras de pegar a água com as tinas nas cabeças, sempre dançando.)
CENA 3
Terminado o balé, o Mendigo-Poeta aproxima-se do lugar onde estão Carioca e Maria-Moita. Ao vê-lo, ambos assumem um ar reservado. Maria-Moita catuca Carioca de leve, que olha com ar severo para o Mendigo-Poeta. Mas Carioca nem tinha notado que durante o balé sua perna de pau florescera: um broto de flor agora reponta na madeira. O Mendigo-Poeta é o primeiro a notar o fenômeno e Carioca, sentindo que o outro está observando, baixa os olhos e vê a pequena rosa.
CARIOCA
Ué!... Que condolências são estas?
MENDIGO-POETA
Não é nada! É a primavera!
E, chegando mais perto, ele se abaixa e colhe a rosa da perna. Depois, com um cumprimento cavalheiresco, ele a oferece a Maria-Moita, que agradece com um sorriso tímido.
MENDIGO-POETA
Com a permissão do nobre amigo, quero oferecer esta primeira dádiva da primavera àquela que, por sua graça e beleza, já conquistou meu coração.
CARIOCA (olhando para ele com desconfiança)
Que é que ele está perambulando aí?...
MARIA-MOITA
Deixe-o em paz, Carioca, ele está sendo apenas um moço fino...
CARIOCA (resmungando)
Eu não gosto desta espécie de conversa. Bem, que é que você quer? Aqui não tem lugar para pilantra.
MENDIGO-POETA (colocando a mão sobre o peito com afetação)
Pilantra, eu? Eu sou o antipilantra, senhor Carioca.
CARIOCA
Então apresente as suas credenciais.
MENDIGO-POETA (toma do violão e canta “Cartão de visita”)
Quem quiser morar em mim
Tem que morar no que o meu samba diz
Tem que nada ter de seu
Mas tem que ser o rei do seu país
Tem que ser um vidinha folgada
Mas senhor do seu nariz
Tem que ser um não-faz-nada
Mas saber fazer alguém feliz.
Tem que viver devagarinho
Pra poder ver a vida passar
Tem que ter um pouco
De carinho para dar
Precisa, enfim, saber gastar,
E ao receber uma esmolinha
Dar em troco o céu e o mar
Tem que ser um louco
Mas um louco para amar!
Vai ter que ter tudo isso \
Tudo isso pra contar. / bis
Tem que bater muita calçada
Só cantando o que o povo pedir
E só vendo a moçada
Praticando pra faquir
Precisa, enfim, filosofar…
... Que ser alguém é não ser nada
E não ser nada é ser alguém…
Tem que bater samba!
E bater samba muito bem!
Vai ter que ter tudo isso \
Tudo isso e o céu também. / bis
Inútil dizer que enquanto o Mendigo-Poeta canta suas credenciais, as mulheres abandonam os afazeres e começam a se aproximar, formando um semicírculo em volta das três personagens centrais. Da segunda estrofe em diante, elas começam a aprovar o que o Mendigo-Poeta diz em seu samba, e algumas chegam a ensaiar passos e movimentos de samba. Terminada a canção, Carioca olha para Maria-Moita que acena com um movimento positivo de cabeça, no que é imitada pelas demais mulheres, que se entreolham como se estivessem participando de importante decisão de uma assembleia.
CARIOCA
Vou colocar a admissão deste nobre vagabundo em votação. Delego, como líder desta comunidade, poderes às concubinas para votarem pelos mendigos que estão trabalhando. Aquelas que concordarem, levantem a destra.
Todas as mulheres levantam as mãos entusiasticamente, olhando com interesse feminino para o Mendigo-Poeta que, silencioso, observa a cena.
CARIOCA
Admissão aprovada, (vai até o Mendigo-Poeta e põe a mão no seu ombro, com um olhar sério) Eu o recebo, nobre vagabundo, na Comunidade Carioca dos Trabalhadores em Mendicância (CCTM), no grau de Mendigo classe V, assumindo o novo membro as obrigações estatutárias, gozando de todos os direitos e privilégios dos membros da comunidade, de acordo com o grau em que foi recebido. Parabéns, e tenho dito!
MENDIGO-POETA
Agradeço ao nobre líder e nobres concubinas por seus votos favoráveis, e prometo contribuir para o bem-estar e felicidade da CCTM, de acordo com as minhas modestas possibilidades.
CARIOCA
Bem, pessoal, eu vou ter que ir à cidade a negócios. (ao Mendigo-Poeta) A minha chapinha aqui (apontando para Maria-Moita) vai lhe dar mais ou menos uma dica de todos os babados, o que você pode ou não pode fazer, o horário das refeições e suas obrigações financeiras para a caixa comum da comunidade. Adeus e sede feliz.
O Mendigo-Poeta concorda com um aceno e Carioca deixa o palco, exagerando um pouco o seu modo meio felino de andar, à maneira dos malandros cariocas.
CENA 4
MENDIGO-POETA
Oh, muito obrigado, madama. Mas a quem tenho a honra de me dirigir?
MARIA-MOITA
Todos me chamam de Maria-Moita. O nome verdadeiro é Maria Francisca do Bonfim.
MENDIGO-POETA
Maria-Moita, porque com certeza a senhora não é de muito falar, deve ser por isso...
MARIA-MOITA
Pode chamar de você mesmo. É, eu falo o menos possível, assim é melhor. As palavras foram inventadas pelo demônio. Tudo o que passa pelos olhos e pelos ouvidos. E algumas vezes pelo nariz também. (voltando-se para as outras mulheres) Feito essas porcas aí. Durante a votação quando elas levantaram os braços, eu quase caí dura. (dirigindo-se a elas) Vocês estão me ouvindo? Nem parece que vocês veem televisão. Amanhã quero todo mundo limpo, porque senão vai ter! Será possível que ninguém aqui tenha ouvido falar em desodorante? Que prepotência!
MENDIGO-POETA
Pelo sotaque, eu diria que você é do Norte.
MARIA-MOITA
Bem, eu não sou exatamente uma pau-de-arara, meu filho. Sou de um pouquinho mais ao sul, da Boa-Terra.
MARIA-MOITA (cantando “Maria-Moita”)
Nasci lá na Bahia
De mucama com feitor
Meu pai dormia em cama
Minha mãe no pisador.
Meu pai só dizia assim: “Venha cá”
Minha mãe dizia sim sem falar
Mulher que fala muito
Perde logo o seu amor.
CORO DAS MULHERES
Mulher que fala muito
Perde logo o seu amor.
MARIA-MOITA
Deus fez primeiro o homem
A mulher nasceu depois
Por isso é que a mulher
Trabalha sempre pelos dois
Homem acaba de chegar,
Tá com fome
A mulher tem que olhar
Pelo homem
E é deitada, em pé,
Mulher tem é que trabalhar!
CORO DAS MULHERES
E é deitada, em pé,
Mulher tem é que trabalhar!
MARIA-MOITA
O rico acorda tarde
Já começa a rezingar
O pobre acorda cedo
Já começa a trabalhar
Vou pedir ao meu babalorixá
Pra fazer uma oração pra Xangô
Pra pôr pra trabalhar \
Gente que nunca trabalhou! / bis
CORO DAS MULHERES
Pra pôr pra trabalhar \
Gente que nunca trabalhou! / bis
MENDIGO-POETA (batendo palmas)
Muito, muito bonito! Se todas as mulheres fossem como você, não precisaria haver divórcio!
Neste momento, a orquestra começa o tema “Pobre Menina Rica”. Maria-Moita vira para suas amigas e diz:
MARIA-MOITA
Agora todo mundo bota a roupa pra secar.
As mulheres partem para a nova tarefa, colocando a roupa pra secar nos arames, o que fazem com a ajuda de varas de bambu. Isso deve estabelecer um tema para um balé colorido: a mistura das cores das roupas com os movimentos das mulheres etc. A Pobre Menina Rica aparece na varanda de frente de seu quarto no momento em que o cantar de um passarinho é ouvido.
CENA 5
POBRE MENINA RICA (cantando “Pobre menina rica”)
Eu acho que quem me vê, crê
Que eu sou feliz,
Feliz só porque
Tenho tudo quanto existe
Pra não ser infeliz…
Pobre menina tão rica
Que triste você fica se vê
Um passarinho em liberdade
Indo e vindo à vontade na tarde...5
Você tem mais do que eu
Passarinho
Do que a menina
Que é tão rica e nada tem de seu...
Ela se deixa ficar na mesma posição, a olhar o céu por um momento, enquanto o Mendigo-Poeta, lá de baixo, estático, ouve a canção. Depois disto, com movimentos elegantes e desencorajados, ela deixa pender sua cabeça e entra no apartamento. O Mendigo-Poeta vira-se para Maria-Moita, que durante toda a canção o estava observando, olhando para ele e para a Pobre Menina Rica alternadamente:
MENDIGO-POETA
Quem é o anjo?
MARIA-MOITA
É a menina triste do 120. Ela está sempre na janela, coitadinha! Olhando para o que não pode ver! O pai é homem muito rico, vive uma vida de lorde. A empregada dela é que me conta tudo. Disse que a menina está sempre chorando.
MENDIGO-POETA
Ela é linda!
MARIA-MOITA
Ah, isso ela é. Um devaneio.
Pouco depois a Pobre Menina Rica aparece na entrada de seu edifício, num diminuto biquíni, deixando à mostra suas lindas formas, numa saída-de-praia entreaberta. O Mendigo-Poeta está encantado e assobia com admiração: fiu-fiu. A Pobre Menina Rica vira-se, olha para ele e ao vê-lo em trapos, sem se barbear, fica furiosa e se aproxima com as mãos na cintura.
POBRE MENINA RICA
Você não tem vergonha?
O Mendigo-Poeta olha para ela dos pés à cabeça, cuidadosamente, prolongando a olhada em cada detalhe de seu delicioso corpo.
MARIA-MOITA
Vergonha de quê?
POBRE MENINA RICA
Como é que um sujeito de sua classe se atreve a mexer com uma menina decente? Por que é que você não se olha no espelho? Por que não se coloca no seu lugar? Você sabe a quem está olhando? Se você se atrever a fazer isto outra vez, vou falar com meu pai para pôr você na cadeia, ouviu, e aprender a não ser engraçadinho! A audácia!
O Mendigo-Poeta, divertido com a cena e sem qualquer mostra de estar zangado, repete o assobio, mas agora de um jeito desapontado, como se estivesse dizendo: “Oh! Olhem só para essa bonequinha tão boba!’’. A Pobre Menina Rica volta-se para sair. O Mendigo-Poeta toma o violão e começa, no início sozinho, mas logo depois seguido pela orquestra, a cantar “Broto triste’’. A Pobre Menina Rica para e deixa-se estar, ouvindo.
MENDIGO-POETA (cantando “Broto triste”)
Menininha bonita
Cheia de mania
Que faz tanta fita
E se acha a maior
Que diz que não topa
Quem lê poesia
Que tudo na Europa
É muito, mas muito melhor!
Menininha, cabeça-de-vento
Sem um pensamento
Senão namorar
Cuidado, menina
Namora direito
Senão não dá jeito
Não está nada fácil casar
Seu biquíni tão biquinininho
Não dá chance, pois quem quer
Não tem mais nada para achar.
Menininha, eu te juro
Você me dá pena
Você tão pequena
Querendo voar…
Menininha, que coisa mais triste6
Se você pensa que existe
Vai ter muito o que pensar…
Menininha, vem cá!
POBRE MENINA RICA
Pra quê? \
MENDIGO-POETA bis
Menininha, olhe lá você… /
A Pobre Menina Rica deixa o palco furiosa e logo depois ouve-se o barulho de um carro esporte dando partida a toda a velocidade.
CENA 6
De um dos apartamentos chega o som amplificado de um aparelho de televisão. Maria-Moita, ao ver que as mulheres terminaram de pôr a roupa na corda grita para elas:
MARIA-MOITA
Ei, meninas, quem quiser pode ver TV até a hora do almoço.
Uma das mendigas acerta um sistema de espelhos que refletem o que está passando num dos apartamentos. As mulheres se agrupam, sentadas no chão, em frente ao espelho refletor, e veem o programa, possivelmente um político fazendo discurso e prometendo mundos e fundos para o Brasil. O Mendigo-Poeta senta-se, encostado a uma árvore, toma o violão e começa a compor, sussurrando a música. O ambiente da comunidade entra em grande calma. De repente, ouve-se o barulho do carro da Pobre Menina Rica que volta. Ela evidentemente desistiu da ideia de ir à praia. Depois de alguns segundos, ei-la que aparece, linda em seu diminuto biquíni, e para por um instante diante da porta de seu prédio, para olhar o Mendigo-Poeta. Este, que ouviu e reconheceu o ruído, dá-lhe um cínico alô. A Pobre Menina Rica responde com um movimento de ombros de maus modos e entra no edifício. Logo depois, ela aparece por entre as cortinas de seu balcão, as quais entreabre para observar o Mendigo-Poeta. Ele, que viu toda a manobra, envia-lhe um beijo com a ponta dos dedos. A Pobre Menina Rica retira-se apressadamente de seu posto de observação. Carioca chega, à frente dos mendigos, que começam a apontar dos quatro cantos do palco. Todos passam em frente ao barraco de Carioca e entregam-lhe os proventos da mendicância. Este toma notas, colocando o dinheiro numa caixa comum, depois de dar a porcentagem devida a cada contribuinte, de acordo com os lucros obtidos. Maria-Moita acha-se ocupada com um grande caldeirão a preparar o almoço. Ela bate no triângulo de ferro, e todos aparecem com pratos, garfos e facas ordinários, passando em fila diante dela. Maria-Moita serve uma ração a cada um, juntamente com um pedaço de pão. Nas áreas dos edifícios e perto dos apartamentos em construção também as empregadas e os trabalhadores das construções são vistos com pratos e marmitas, sentando-se não importa onde para comer.
A “Marcha do amanhecer’’ deve aqui ser repetida numa orquestração diferente, como para dar a impressão que mais um período do dia foi vencido, finalizando musicalmente numa espécie de langor que insinua fadiga e a necessidade de uma boa sesta. Os mendigos começam a se espreguiçar e cada um escolhe a sua sombra para o sono de depois do almoço. Pouco a pouco, estabelece-se uma harmonia musical de roncos, perfeitamente orquestrada para produzir o efeito cômico desejado. Neste momento, a Pobre Menina Rica, de short e uma toalha enrolada na cabeça como turbante, aparece na janela e se deixa observar pelo Mendigo-Poeta, o único que não dorme. Ele coloca sua mão sobre o coração e a eleva na direção da Pobre Menina Rica, num sinal de encantamento. Ela une as mãos junto ao peito, como para receber o gesto de carinho. Sai, em seguida, enquanto o palco gira mecanicamente, surgindo então o seu quarto de dormir.
CENA 7
O quarto de dormir da Pobre Menina Rica, cheio de enormes animais estofados. Ela vai ao espelho, olha-se e sorri, encantada de si mesma. Depois, faz um passo de balé, e ao som da música dança seu encantamento, utilizando frequentemente os seus grandes bichos de pelúcia como parceiros. O balé deve terminar quando a Pobre Menina Rica, numa veloz pirueta, for se aproximando do espelho — um dos muitos que existem no quarto e que multiplicam a dança e a variedade de passos —, e quando ela chegar em frente do espelho, deve inclinar seu corpo contra o vidro e beijar-se. Ao terminar o balé, o som de uma violenta discussão se faz ouvir lá de baixo. A Pobre Menina Rica vai até o balcão para olhar, e neste momento o palco gira, voltando ao cenário original. Vê-se então um pequeno grupo formado em frente ao barraco de Maria-Moita, em meio ao qual estão o Mendigo-Poeta, o Mendigo Paulista e o Mendigo Ladrão. Ao crescer a discussão, outros mendigos se aproximam.
MENDIGO PAULISTA
Eu digo e digo certo! A única coisa na vida é o valor do trabalho e da eficiência. Não há mais lugar para poetas e sonhadores. Quem não produz é um parasita, vive nas costas dos que produzem. Nós temos que ser práticos. O lucro de amanhã é o trabalho de hoje.
MENDIGO LADRÃO
Bobagem! Qual a utilidade do trabalho? O que está à mão não pertence a ninguém. Pertence a quem vê primeiro. Qual a utilidade desse famoso instinto de propriedade? Tudo burrice! Os mais burros produzem para o lucro dos mais inteligentes. Por que é que devo respeitar uma pequenina carteira à mostra, saindo do bolso de um otário? Ou uma bolsa aberta de uma dessas burguesonas que vão aos supermercados pra fingir que elas são boas donas de casa? O dinheiro está lá, olhando pra mim e suplicando: “Me leva, me leva!’’. Elas vão sentir falta dele? Claro que não! Tudo aquilo é pra comprar quinquilharias inúteis: vestidos caros, joias, e às vezes para pagar o tempo de um bonitão. Eu não! Na minha opinião, o que os olhos não veem, o coração não sente.
MENDIGO PAULISTA
Ok, mas espere pelo revertério. Enquanto nós construímos uma civilização, você vai acabar seus dias vendo o sol nascer quadrado! E depois pra que roubar em pequenas quantidades? Você tem é que tirar vantagem das grandes oportunidades do jogo dos mercados, comprar por cem e vender por mil. O mundo não gosta de otários, mas também não gosta de ladrões de galinha.
MENDIGO LADRÃO
Qual nada! Essas coisas é que me deixam louco! Pra que correr, gastar dinheiro comprando rosas numa florista, quando você pode colher a mesma rosa num jardim? Uma rosa pertence a alguém? Um passarinho pertence a alguém? Dinheiro pertence a alguém? Quem faz o dinheiro? O governo. Quem paga o governo? O povo! Quem sou eu? O povo! Portanto o dinheiro é meu. Não há a menor dúvida! Ora essa é muito boa!
MENDIGO PAULISTA
Se todos pensassem como você não restava nada de sobra, nem pra roubar! Quem ia produzir o dinheiro, então? Eu, o homem prático? O que trabalha? (virando-se para o Mendigo-Poeta) E você, amigo, você que gosta da vida na base de um violão e de suas canções? Que é que você tem a dizer sobre tudo isto?
MENDIGO-POETA (pegando o violão e dirigindo-se ao Mendigo Paulista, canta “Sabe você?”)
Você é muito mais que eu sou
Está bem mais rico do que eu estou
Mas o que eu sei você não sabe
E antes que o seu poder acabe
Eu vou mostrar como e por quê
Eu sei, eu sei mais que você…
Sabe você o que é o amor?
Não sabe, eu sei.
Sabe o que é um trovador?
Não sabe, eu sei.
Sabe andar de madrugada
Tendo a amada pela mão?
Sabe gostar?
Qual sabe nada
Sabe não…
Você sabe o que é uma flor?
Não sabe, eu sei.
Você já chorou de dor?
Pois eu chorei.
Já chorei de mal de amor
Já chorei de compaixão
Quanto a você, meu camarada,
Qual o quê, não sabe não…
(dirigindo-se ao Mendigo Ladrão)
E é por isso que eu lhe digo
E com razão
Que mais vale ser mendigo
Que ladrão.
Sei que o dia há de chegar
E isso seja como for
Em que você pra mendigar
Só mesmo amor…
Você pode ser ladrão
Quanto quiser
Mas não rouba o coração
De uma mulher.
Você não tem alegria
Nunca fez uma canção
Por isso a minha poesia \
Há! há! você não rouba não! / bis
Todos os circunstantes, inclusive Carioca e Maria-Moita, parecem aprovar com veemência as palavras do Mendigo-Poeta, que é cumprimentado com uma salva de palmas. Seus dois oponentes retraem-se um pouco, embaraçados, e vão para os seus barracos, conversando com animação como a ponderar ainda sobre o que acabaram de ouvir. Neste instante, o Mendigo-Poeta olha para cima e vê a Pobre Menina Rica, que da sua janela ouviu toda a discussão e delira de entusiasmo. Num impulso irresistível, ela atira-lhe um beijo. No que os mendigos se dispersam e retornam às suas atividades, a orquestra ataca o tema “Canção do amor que chegou”.
POBRE MENINA RICA (cantando do seu balcão ‘‘Canção do amor que chegou”)
Eu não sei, não sei dizer
Mas de repente esta alegria em mim
Alegria de viver,
Que alegria de viver
E de ver tanta luz, tanto azul!
Quem jamais poderia supor
Que de um mundo que era tão triste e sem cor
Brotaria essa flor inocente
Chegaria esse amor de repente
E o que era somente um vazio sem fim
Se encheria de flores assim...7
Coração, põe-te a cantar
Canta o poema da primavera em flor
É o amor \
O amor chegou bis
Chegou enfim! /
CENA 8
O palco gira mostrando o apartamento de Susete, que é caracterizado por um luxo de péssimo gosto. Ela anda excitadamente em frente de Baby Dourado, que tem um cigarro na boca e dirige a Susete um olhar dramático.
BABY DOURADO
É a verdade! Você não me ama como uma mulher devia amar um homem. Eu queria ver se eu fosse um simples bancário, em vez de ser um grande banqueiro... Você não viveria comigo. Você só está comigo por causa do meu dinheiro!
SUSETE
Deixe de ser tolo e pare de falar bobagens! Você sabe muito bem que eu podia ter homens com dinheiro, até mais ricos que você, se eu quisesse. E bem mais moços que você, o que não atrapalharia em nada... Você acha então que uma mulher como eu gostaria de um homem da sua idade se não fosse por amor? Você está completamente por fora...
BABY DOURADO
Eu não sei... Esta dúvida me mata! Se eu ao menos pudesse ter certeza... Mas às vezes me parece que todos os carinhos que você me faz têm um preço...
SUSETE
Eles têm um preço, sim! O preço da minha juventude! Veja bem o que eu penso de suas joias, olhe só! (ela vai até a penteadeira, abre uma gaveta, tira algumas joias, depois arranca violentamente os brincos, o broche, o solitário de diamante de seu dedo, então vem até a janela e grita) Veja bem o que eu penso de suas joias, (e, fazendo uma pequena pilha, joga tudo fora)
BABY DOURADO (correndo para ela)
Meu amor, eu sou um idiota, me perdoe. (e abraçando-a com paixão, tenta beijá-la, o que Susete no início tenta recusar, mas depois acaba deixando) Não se incomode com as joias; eu lhe dou outras, mais valiosas ainda. Tudo o que quero é o seu amor.
O palco gira, enquanto Susete começa a desabotoar a blusa, como quem cumpre um dever amolante, e vemos Num-Dô, que corre ao local onde as joias caíram e começa a catá-las. Ele as recolhe cuidadosamente num pequeno embrulho e vai para a porta dos fundos do edifício, onde, um pouco mais tarde, aparece Susete.
SUSETE
Pegou tudo?
NUM-DÔ
Pode conferir. Foram justamente as joias que a senhora disse que ia jogar.
A moça examina avidamente o pacote que Num-Dô lhe apresenta e, parecendo satisfeita, coloca-o na bolsa. Em seguida, tira uma nota da carteira e entrega-a a Num-Dô. Este reclama.
NUM-DÔ
Agora o preço é mais caro. São duas dessas.
SUSETE
Ah, você está querendo me explorar, não é? Olha aqui, não se faça de esperto não, ou vai ver uma coisa comigo!
NUM-DÔ (indiferente)
Duas, ou eu conto.
SUSETE
Não!
NUM-DÔ
Desculpe, mas é a inflação. Vou contar até três. Um, dois...
SUSETE
Ah, miserável! Você ainda me paga! (e tirando uma segunda nota, ela a dá a Num-Dô e entra apressadamente)
CENA 9
O Mendigo-Poeta vem da rua com um olhar desolado, olhando para a janela da Pobre Menina Rica. Ao vê-lo, Maria-Moita caminha até ele e pergunta:
MARIA-MOITA
Morreu alguém na sua família? Pra que esse olhar triste? (e começa a descascar batatas que joga no caldeirão)
MENDIGO-POETA
É que estou muito apaixonado.
MARIA-MOITA
Pela menina do 120?
MENDIGO-POETA
Puxa, nada escapa a você, hein, Maria-Moita...
MARIA-MOITA
Ah, neguinho... Eu sou filha de Oxum; percebi logo de saída. Mas quer saber de uma coisa? Você está arrumando sarna pra se coçar.
MENDIGO-POETA
Eu sei.
MENDIGO-POETA (cantando “Primavera”)
O meu amor sozinho
E assim como um jardim sem flor
Só queria poder ir dizer a ela
Como é triste se sentir saudade…
E que eu gosto tanto dela
Que é capaz dela gostar de mim
Acontece que eu estou mais longe dela
Que da estrela a reluzir na tarde…
Estrela, eu lhe diria
Desce à terra, o amor existe
E a poesia só espera ver
Nascer a primavera
Para não morrer...
A Pobre Menina Rica surge à janela. Ela parece muito contente; e quando canta a resposta da “Primavera”, toda a sua mímica indica que está absolutamente certa de si mesma e da sua natureza de mulher, agora mais bem plantada, não admitindo obstáculos ao amor.
POBRE MENINA RICA (cantando)
Não há amor sozinho
É juntinho que ele fica bom
Eu queria dar-lhe todo o meu carinho
E queria ter felicidade…
É que o meu amor é tanto
É um encanto que não tem mais fim
E no entanto ele nem sabe que isso existe
É tão triste se sentir saudade…
Amor, eu lhe direi
Amor que eu tanto procurei
Ai, quem me dera eu pudesse ser
A tua primavera
E depois morrer...
[Até aqui vimos acompanhando o texto original. O que se lê em seguida é uma tentativa de reconstituição da estrutura do restante da peça, feita a partir das anotações que o próprio Vinicius conservou.]
CENA 10
Decididamente aquela comunidade tendia a aumentar de população. Ao cair da tarde chega um novo mendigo, tão miserável, mas tão miserável, que inspira pena aos outros mendigos. É um pau-de-arara que resolve, sem mais eira nem beira, na maior dureza do mundo, ver se encontra abrigo no meio daquela gente, sua irmã na miséria. Carioca, como sempre faz, pede-lhe que conte sua história, que é ao mesmo tempo uma história de miséria e de otimismo, porque o mendigo Pau-de-Arara, apesar das adversidades que enfrentou, nunca perdeu a confiança nos seus semelhantes.
PAU-DE-ARARA (cantando “Pau-de-arara”)8
Eu um dia, cansado que tava da fome que eu tinha
Eu não tinha nada, que fome que eu tinha
Que seca danada no meu Ceará
Eu peguei e juntei um restinho de coisas que eu tinha
Duas calça velha e uma violinha
E num pau-de-arara toquei para cá
E de noite eu ficava na praia de Copacabana
Zanzando na praia de Copacabana
Dançando o xaxado pras moças olhá
Virgem Santa, que a fome era tanta que nem voz eu tinha
Meu Deus quanta moça! Que fome que eu tinha
Mais fome que eu tinha no meu Ceará.9
PAU-DE-ARARA (falando)
Foi aí que eu arresolvi a cumê gilete. Tinha um cumpadre meu lá de Quixeramubim, que ganhou um dinheirão comendo gilete na praia de Copacabana. Eu não sei não, mas eu acho que ele comeu tanta, que quando eu cheguei lá aquela gente toda já tava até com indigestão de tanto ver o cabra comer gilete. Uma vez, eu tava com tanta fome, mas com tanta fome, que disse assim prum moço que vinha passando: “Ó decente! Vosmicê deixa eu cumê uma giletezinha pra vosmicê ver?”. ‘‘Tu não te manca não, ó pau-de-arara?’ “Só uma, moço, que eu ainda não comi nadinha hoje?” “Você enche, hein?” Aquilo me deixou tão aperreado, que não fosse o amor que eu tinha na minha violinha, eu tinha rebentado ela na cabeça daquele... pai-d’égua!
PAU-DE-ARARA (cantando)
Puxa vida! Não tinha uma vida pior do que a minha
Que vida danada, que fome que eu tinha
Zanzando na praia, pra lá e pra cá.10
Quando eu via toda aquela gente num come-que-come
Eu juro que tinha saudade da fome
Da fome que eu tinha no meu Ceará
E aí eu pegava e cantava
E dançava o xaxado
E só conseguia porque no xaxado
A gente só pode mesmo se arrastar
Virgem Santa! Que a fome era tanta
Que até parecia
Que mesmo xaxando meu corpo subia
Igual se tivesse querendo voar...
PAU-DE-ARARA (falando)
Às vezes a fome era tanta, que volta e meia a gente arrumava uma briguinha, pra ir comer a boia lá no xadrez. Eta quentinho bom no estômago! Com perdão da palavra, a gente devolvia tudo depois, que a boia já vinha estragada. Mas enquanto ela ficava quentinha lá dentro... que felicidade! Mas agora as coisas tão melhorando; tem uma dona lá no Leblon, que gosta muito de ver é eu comer caco de vridro. Com isso já juntei uns quinhentos merréis. Quando tiver mais um pouco, vou-me embora. Volto pro meu Ceará!
PAU-DE-ARARA (cantando)
Vou-me embora pro meu Ceará11
Porque lá tenho um nome
Aqui não sou nada, sou só Zé-com-Fome
Sou só Pau-de-Arara, nem sei mais cantar
Vou picar minha mula
Vou antes que tudo rebente
Porque tou achando que o tempo está quente
Pior do que anda, não pode ficar!
CENA 11
A aceitação do mendigo Pau-de-Arara na comunidade provoca um acalorado debate entre o Mendigo-Poeta e outros dois mendigos. Um deles é Carioca, o Mendigo-Chefe, para quem, à luz dos acontecimentos, os méritos do Pau-de-Arara resultam insuficientes. O outro é Num-Dô, o administrador dos bens da comunidade, para quem a canção do mendigo Pau-de-Arara não resulta apenas insuficiente, mas inútil como qualquer canção. O Mendigo-Poeta toma o partido do Pau-de-Arara. Seus argumentos convencem Carioca, que opinara pressionado pelo olhar de Num-Dô. A comunidade vota favoravelmente, isolando a posição do Mendigo-Administrador. Pau-de-Arara é aceito. A Pobre Menina Rica, que a tudo assistira de sua sacada, apaixona-se irremediavelmente, irresistivelmente, pelo Mendigo-Poeta, convertido em verdadeiro herói aos seus olhos, por sua firme defesa dos humildes.
No terreno baldio, o mendigo Pau-de-Arara arma sua tenda sob a copa da árvore disponível, próxima do lugar onde se acomoda o Mendigo-Poeta. E como quem ama só sabe falar nisso ou ficar calado, este conta ao recém-chegado sobre a Pobre Menina Rica. O Pau-de-Arara, mendigo mais pobre que todos, porque também pobre de amor, entra em fossa e canta a sua solidão.
PAU-DE-ARARA (cantando “Lamento do homem só”)
Eu vim de muito longe
Eu vim de muita dor
‘Travessei o mundo
Atrás de um amor
Mas voltei tão sozinho
Mas sozinho não tem
Quem me dá carinho
Tem que ser meu bem
Eu vim de muito longe
Eu vim de muita dor
‘Travessei o mundo
Atrás de um amor
Eu sou um cabra valente
Eu sou um cabra pescador
Eu sou bom de rede
Eu sou bom de amor
Eu vim de muito longe
Eu vim de muita dor
‘Travessei o mundo
Atrás de um amor
Mas não é que eu me queixe
Eu não tenho ninguém
Nem pra dar meu peixe
Nem pra dar meu bem.
Segundo ato
CENA 1
A noite cai, uma noite linda. Começam a chegar os convidados para uma festa na casa da Pobre Menina Rica. Ao mesmo tempo, com o violão do Mendigo-Poeta, os mendigos organizam sua própria festinha. Evidentemente interessada, a Pobre Menina Rica desce com um grupo de rapazes e moças, alguns já meio altos, e confraternizam com os mendigos. A vitrola em cima toca um samba que serve para dançar o twist; os rapazes e moças ensinam os mendigos a dançar a novidade, que alguns misturam com passos de samba (balé samba-monkey). A Pobre Menina Rica dança com o Mendigo-Poeta.
CENA 2
Todos se retiram e ficam apenas a Pobre Menina Rica e o Mendigo-Poeta. Este se declara, enquanto Pau-de-Arara, de sua tenda, canta uma toada nostálgica. Idílio.
PAU-DE-ARARA (cantando “Danado de saudade”)12
Quando a noite vem descendo
E a lua aparecendo
Diz baixinho uma oração
Não há coisa mais bonita
Que o luar do meu sertão.
Terra seca mais danada
Não dá nada, dá saudade
Saudade, saudade que dá
Não dá nada, dá vontade
Vontade de voltar pra lá.
Vou mandar rezar um terço
Para ver se de Deus mereço
Uma última bênção
E morrer junto ao meu berço
No luar do meu sertão.
O que dá pretexto para
CENA 3
Balé mostrando o que vai pela imaginação de Pau-de-Arara. Sertão ao luar, o Pai-do-Mato etc.
CENA 3A
Mendiguinha.13
CENA 4
Uma cena entre Susete e Baby Dourado. Desta vez desaparece um solitário e Susete, furiosa, atribui o roubo a Num-Dô. Ela avisa a polícia.
CENA 5
Batida da polícia. O Mendigo-Espião é desmascarado. Junta-se aos tiras. Briga-balé. Todo mundo em cana, menos as mulheres. Num-Dô morre. Dizem que correu menos rápido, e acabou boiando num rio,14 em versão moderna e inoportuna da Ofélia shakespeariana.
CENA 6
As mulheres, sozinhas, dão busca no barraco de Num-Dô e encontram uma fabulosa fortuna enterrada. Fiança solta os mendigos. E todos ficaram quase tão ricos quanto a Pobre Menina Rica. Balé de confraternização entre as mulheres.
CORTINA
CENA 7
Fase capitalista. No terreno baldio agora existe um edifício quase tão alto quanto o da Pobre Menina Rica. Música da inauguração do novo edifício dos mendigos, com toda a pompa e circunstância. Os mendigos a caráter, vestidos exagerados das mulheres etc. O Mendigo-Poeta de terno e gravata. Chega a Pobre Menina Rica e ao ver o Poeta-ex-Mendigo em sua nova indumentária dá um grito de aflição e entra chorando. Mais uma incoerência da psicologia feminina. A Menina Rica, tão apaixonada, preferia que seu amor fosse pobre. E desamou-o por causa do enriquecimento. Por quê? Nem ela sabia. Nem o Mendigo, nem o Poeta, que então canta a sua desventura, sob a sacada vazia.
MENDIGO-POETA (cantando do palco para o balcão “A minha desventura”)
Ah, doce sentimento
Lindo e desesperador
Ah, meu tormento infindo15
Que me vais matar de dor
Onde estão teus olhos
Cheios de ternura
Tua face pura
Cheia de esperança
A minha desventura
É ter perdido o teu amor.
Ah, se eu pudesse nunca
Ter magoado o teu amor
Teu amor tão mais que o meu
Teu amor tão-só pra mim
Meu amor tem dó de mim.
Minha alma te jura
A minha desventura
É ter perdido o teu amor.
Ah, doloroso instante
De adeus e de dor
Oh, fere sem piedade
Amor dilacerante16
E mata-me também de amor
Ah, se ela não voltar
Eu sei que vou morrer de amor...
Ela se comove e desce. Quando chega encontra o Mendigo-Poeta já com os antigos farrapos e... com ele faz as pazes!
CENA 9
Nessa noite, o Mendigo-Poeta, que tem o estofo de um gentleman, convida sua bem-amada para jantar diante do seu casebre, ao luar, numa mesinha improvisada com um caixote velho e o resto conseguido à base de despachos encontrados pelas encruzilhadas da cidade: uma galinhazinha com uma farofinha amarela, uma cachacinha, uma velinha acesa para tornar o ambiente mais romântico. A Pobre Menina Rica fica ainda mais apaixonada. Nunca em sua vida tinha ela visto tamanho cavalheirismo. O Mendigo-Poeta, ao vê-la assim abandonada, leva-a para um canto do terreno baldio, onde a executa nas devidas condições. Depois cantam juntos a “Valsa-dueto”. De início, o Mendigo-Poeta e canta a valsa para a Pobre Menina Rica, em seguida o casal dança o pas de deux, eco do seu dueto de amor, e finalmente contracantam.
MENDIGO-POETA E POBRE MENINA RICA (cantando “Valsa-duelo’’)
Ouve, meu amor, escuta a voz
Que vem da solidão
Tudo silenciou
E a noite em nós
É quente de paixão.
Vem, a noite é linda
E eu quero ver no teu olhar
Nascer a estrela da manhã
No céu do amor.
Vem, vamos olhar
O grande céu do adeus
Nesse luar cheio de dor
Cheio de paz
E quando tu não quiseres mais
Amor, vem aos braços meus...
CENA 10
Sem acompanhamento da orquestra, todo o elenco canta “Sabe você?” — cada personagem importante cantando uma estrofe — como para sublinhar a verdadeira posição do Mendigo-Poeta em face de uma sociedade que se reserva cada vez mais diante do amor, da poesia, e da necessidade de comunicação entre os seres humanos.
MENDIGO-POETA
Canção: “Sabe você?”
…
Por isso a minha poesia
CORO
Há! há! você não rouba não!
Há! há! você não rouba não!
CORTINA
1963-5
Notas
1 Texto montado a partir de duas versões conservadas por Vinicius. O título foi atribuído pelo organizador. (N.O.)
2 Alusão ao peculiar processo de seleção para ingresso no Country Club do Rio de Janeiro, o mais sofisticado e o mais disputado pelos novos-ricos, que, quando não ganham bola preta, veem confirmadas suas pretensões de frequentar a sociedade carioca. (N.O.)
3 Vinicius pensava em convidar o ator Haroldo Costa — que não tinha uma perna — para o papel de Carioca. (N.O.)
4 Na primeira versão, estes versos soavam: “Que a noite não foi mole não/ De tanto namorar”. (N.O.)
5 Variação deste verso: “Indo e vindo a voar à vontade” e “Indo e vindo e cantando à vontade”. (N.O.)
6 Nas primeiras versões da letra, Vinicius queria associar a menininha a uma dança da época. O verso inicialmente saiu assim: “Broto triste que vive de ‘zorba’”, referindo-se à dança que o filme Zorba, o grego tornou famosa. Evoluiu depois para uma forma menos dura ao ouvido: “Broto triste/ Que vive de twist”. Daí surgiu o título da canção. (N.O.)
7 Variação: “Se encheria de cores assim...”. (N.O.)
8 A letra — cantada ou falada — dessa canção difere em alguns pontos daquela veiculada no Livro de letras de Vinicius de Moraes (São Paulo, Companhia das Letras, 1991). Optamos por reproduzir aqui a versão primeira, antes de sua consagração na voz Ari Toledo. (N.O.)
9 Alternativa: “Zanzando na praia, pra lá e pra cá”. (N.O.)
10 Alternativa: “Mais fome que eu tinha no meu Ceará”. (N.O.)
11 Variação: “Vou voltar pro meu Ceará’’. (N.O.)
12 Este é o título atribuído por Vinicius no seu manuscrito. O Livro de letras traz “Saudade que dá”. (N.O.)
13 Segundo Carlos Lyra, essa nova personagem, introduzida quase no final do musical, teria a função de atenuar a solidão de Pau-de-Arara, exposta na canção “Lamento do homem só”. (N. O.)
14 Alusão ao rio da Guarda, onde nos anos 1960, durante o governo Lacerda, diversos corpos de mendigos do Rio apareceram boiando. (N.O.)
15 No Livro de letras optou-se por “tormento infinito”. (N.O.)
16 Variação constante no Livro de letras “Oh, espera sem piedade/ Amor dilacerante”. (N.O.)