Crônicas de Cinema
LUZES DA CIDADE (IV) (O TRÁGICO DOS TRÁGICOS)
Uma noite, no Biltmore Theater de Los Angeles, eu que vi a atriz Judith Anderson trabalhar-se por dentro no sentido de um insulto cerebral, no ato de representar a Medeia de Eurípides na versão de Robinson Jeffers. Essa grande dama do teatro americano — realmente uma trágica de impressionantes recursos — ululou as célebres invectivas do texto grego, deformadas por Jeffers em não pequena escala, com um vigor físico que deixou alagada em suor não apenas ela, mas toda a assistência. A Medeia de Judith Anderson, não é preciso dizer, constitui um acontecimento.
Vai ver mesmo, não é nada disso. É lógico que a tragédia grega (da mesma forma que a shakespeariana ou mesmo uma tragédia mais bem-comportada como a francesa) serve-se da poesia das palavras, do seu entrechoque dramático em função de sentimentos mais dramáticos ainda, comunica-se “fisicamente” — com tanto mais força quanto maior for o temperamento trágico do intérprete. Quando vemos Judith Anderson, alucinada de dor, esmagar — e esmagar de fato! — a carne dos seios, o seu desespero nos é transmitido com a sensação da dor física do seu gesto, e admiramos talvez mais a intérprete que se abandona assim à recriação da personagem, que o próprio criador da personagem. Mas vai ver mesmo Chaplin é que sabe.
Chaplin é um imenso trágico porque o mundo onde colocou o seu lírico vagabundo é um mundo trágico. É um mundo onde há uma linda ceguinha, a quem Carlitos não pode deixar de amar — e que maior tragédia? É um mundo onde há milionários, gastos por dentro, que oprimem a todos, que compram tudo, que têm o que querem e no entanto estão sempre à beira do suicídio — e que maior tragédia? É um mundo onde os homens só se aproximam da realidade da poesia, só se fazem cordiais e só reconhecem seus amigos e procuram ajudá-los quando estão bêbados — e que maior tragédia? É um mundo onde o instinto de conservação em geral leva a melhor sobre os melhores sentimentos (Carlitos, para não se afogar, trepando às costas do mesmo homem a quem procurara salvar de suicídio um segundo antes; Carlitos derrubando um velho pária na rua para lhe arrancar uma bagana de charuto — tudo isso a dirigir o Rolls-Royce do “amigo” milionário que só o reconhecia quando bêbado; Carlitos acabando por compreender e aceitar a contingência humilhante dessa amizade e saindo calmamente da casa de que fora expulso, a comer uma banana roubada de passagem no ato da expulsão) — e que maior tragédia?
Para Chaplin a tragédia está no caminho de Carlitos entre os homens — ele o vagabundo disponível e puro. E a tragédia dialética, a incutir eventualmente entre situações mais cômicas ou ridículas, nascidas do sentimento individual de permanência da criatura humana em luta com a sua incapacidade para se bastar a si só, a relação cria o conflito e o conflito é trágico-cômico. A bem-amada cega joga-lhe um vaso d’água em plena cara, num momento de funda contemplação amorosa. No instante em que, pela primeira vez, ele beija a mão da ceguinha numa declaração muda de amor, e pergunta quando poderá vê-la novamente, um gato angorá postado a uma janela derruba-lhe no alto do êxtase um vaso de flores que o abate. Sua pureza o faz vítima dileta dos maus fados — donde a sua malícia defensiva. E ele só se apresenta com a imagem verdadeira da tragédia quando sobrevém o irremediável, quando se sente sozinho ou acuado como um animal. Eu me lembro de três situações assim no filme, em escala progressiva de intensidade dramática: o desespero que Carlitos
tem ao ver o seu adversário no box derrubar com um murro o possante vencedor da última luta antes da sua; a agonia que lhe vem ao sentir que a polícia o vai prender como ladrão, quando precisa a todo o custo de liberdade para entregar à bem-amada o dinheiro necessário à operação — seguida por aquela miraculosa imagem no hall da escada, a casa às escuras, em que ele em sua fuga ouve a sirene da polícia fora e finalmente a sua patética figura ao sair da prisão e todo o emocionante final.
Trágico do Trágico — tão grande em sua arte quanto o foram Sófocles, Webster, Shakespeare ou Racine na tragédia teatral, Dante, Goethe ou Pushkin na poesia, Haendel ou Beethoven na música; Michelangelo ou Goya na pintura; Dostoiévski, Tolstoi ou Melville no romance; talvez maior que todos, pela sua capacidade ímpar de comunicação, através de um meio de que é o único gênio inconteste e com o qual criou e elaborou a maior obra artística do século, com a mesma paciência, amor e luta com que os velhos mestres de obras edificaram no artesanato as imensas e eternas catedrais da Idade Média.
Última Hora, 7 de dezembro de 1951