Crônicas de Cinema
LUZES DA CIDADE (II) (O PERFEITO CAVALHEIRO)
O homem é um ser de defeitos, e entre estes os menores não são os que têm a ver com a falta de cordialidade e cavalheirismo. Tampouco são tais defeitos humanos característica de classe: acontece que entre as classes privilegiadas eles são bem mais encontradiços que entre os simples, em que uma relação generosa com a vida supre muitas vezes certas carências implícitas na falta de cultura e lustro. É mais fácil ao homem simples ser grosseiro no comer que no trato — e a recíproca é, infelizmente, verdadeira. A nossa chamada classe alta é useira e vezeira no destratar a pessoa humana desde que este não se configura aos padrões estabelecidos do que se considera “ser bem”. “Ser bem” significa, para essa inoportuna casta, ser igual, ou melhor, ser como a tradição da casta exige: impessoalmente pessoal na elegância, casual na relação, vago no dizer, distante no sentir, e sempre afirmativo no não ser. Sua atitude falsamente protetora, a sua arrogância para com os humildes, seu abstrato dar de ouvidos, sua — em última instância — paciência para se afirmar dentro da mais absoluta falta de afirmação, incutiram-lhe de tal modo essa displicência para com o alienígena da classe, que com relação a este, o seu simples olhar ou falar constituem um insulto.
Carlitos é o antigrã-fino. Sua adorável elegância parte de uma natureza especialmente bem disposta para com o ser humano. Num mundo e numa sociedade que o ostracizam, esse imortal vagabundo atinge o perfeitamente cordial. Carlitos ama o seu semelhante, e consegue ser cortês — sem ser nunca covarde — mesmo com quem o abotoa pela gola. Carlitos nunca agride, sempre se defende. Esse perfeito cavalheiro é incapaz de um gesto de indiferença ou de maldade. No auge da bebedeira, ao ver desenrolar-se diante dele uma dança de apaches, seu sentimento é defender a apachinete dos sacolejões coreográficos que lhe dá seu comparsa. Ao soltar no chão a dádiva bem-amada de uma flor para ir socorrer um quase suicida e uma vez passado o incidente, volta ele atrás no seu passinho de pinguim, malgrado a presença de um polícia — entidade muito temida — para apanhar a flor largada no pó pelo seu movimento de auxílio. E esse cavalheirismo leva sempre a melhor sobre o seu instinto de conservação, pois Carlitos acaba por dar tudo o que tem no bolso à mulher amada — mesmo o último dinheiro que esse instinto conseguira separar.
Um tal gentleman se preocupa menos em andar do lado certo da rua do que em estar atento às necessidades reais da mulher amada. Incapaz de qualquer cafajestismo, ao ser expulso pela manhã de uma festa dada em sua honra, não se esquece de beijar a mão de uma vigarista que pernoitará na casa e que, à sua saída, reconhece. Sua elegância vem de dentro — é um fruto do seu grande sentimento de comunicação com o mundo que o maltrata mas que ele ama.
Carlitos, o pária, que de um pedaço de fundilhos arrancados por uns moleques de rua, aproveita e faz um lenço para o bolso do fraque em tiras — que grande, que genuíno, que perfeito cavalheiro!
Última Hora, 5 de dezembro de 1951